"Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil [vou mesmo em agosto] e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo o meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo."
A frase acima, escrita em 1974 por Clarice Lispector, que teria completado 93 anos no último dia 10, foi uma intuição quase premonitória da autora. Hoje, infelizmente, há uma avalanche de fragmentos de textos erroneamente creditados a ela na internet. Para tentar resolver um pouco do problema, a Editora Rocco lançou o livro As Palavras, com uma seleção de frases e trechos da autora. A organização da obra foi realizada pelo pesquisador Roberto Corrêa dos Santos, um dos maiores especialistas na obra de Clarice no país.
"O livro, creio firmemente, começará a oferecer parâmetros públicos e seguros da inteligência do dizer em Clarice. Com isso, as frases atribuídas à Clarice nas redes da web ficarão expostas ao confronto com as frases efetivas, com o lacre de sua assinatura rara e única", disse Santos em entrevista por e-mail à Gazeta do Povo.
O trabalho de curadoria das frases, segundo o autor, funcionou quase como a montagem de uma exposição de arte. "As Palavras, considerei-o, e é, como um espaço expositivo, e as frases, obras de arte-escritura", define. Para isso, o pesquisador seguiu alguns passos: primeiro, fez a seleção dos livros (usou principalmente dois: Um Sopro de Vida e A Descoberta do Mundo), dos quais as frases seriam pinçadas e, depois, escolheu trechos de "sentido completo". "Porém, sempre múltiplos em suas significações, e de força , a um só tempo plástica, filosófica, poética, existencial."
Começo
Roberto Corrêa dos Santos defendeu, em 1976, a primeira dissertação de mestrado (na PUC do Rio de Janeiro) dedicada a Clarice Lispector, um ano antes da morte da escritora. Entretanto, o interesse pela autora veio antes da universidade (ele é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense). "Tive as inicias aproximações com sua escrita ainda quando no tempo dos estudos anteriores à entrada na universidade; amei aquilo, digo assim por não saber como nomear aquelas leituras, aqueles textos e dizeres, aqueles movimentos por mim intuídos como algo que me punha em certo conforto de pertencimento."
Na UFF, conheceu sua "mestra maior", a professora Diva Vasconcellos da Rocha, que lhe apresentou os "modos cuidadosos de tratar obras altas da literatura do Brasil e de outros lugares. Entre essas obras altíssimas, a de Clarice", conta.
Disseminar esse conjunto "de matérias verbais de belezas", como define o pesquisador, é a principal intenção de Santos com o livro. Portanto, quem tiver como meta se aprofundar no que Clarice escreveu e falou, localizará na obra seu estilo único. Por isso, o desmembramento em frases é bastante pertinente. "Encontra-se a alegria do poder ler, aqui, ali, seguir os impulsos, as respirações. Parar, voltar, fazer livremente caminhos e atalhos de leitura", salienta Santos.