“Ao ver o francês que se afastava pela pista do aeroporto, levando na mala de mão o que ele lhe entregara na véspera, Alexandre se sentiu expropriado, pela primeira vez. O francês de mãos dadas com a mulher pela pista do aeroporto, levava uma parte dele. Era como se ele tivesse vendido a própria mãe. E, de quebra, entregado um filho de graça.” Trecho do livro O Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho| Foto:

Saiba mais sobre o escritor, jornalista e tradutor Bernardo Carvalho.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1960.

Foi editor do suplemento Folhetim, da Folha de S. Paulo, e corresponde do jornal em Paris e Nova Iorque.

Entre seus livros, todos publicados pela Companhia das Letras, destacam-se Nove Noites (2002, prêmio Portugal Telecom), Mongólia (2003, prêmio Jabuti) e O Sol se Põe em São Paulo (2007).

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O que as mães, tão zelosas e amorosas, têm a ver com guerra, orfandade, violência? Muito mais do que se imagina, se pensarmos que "todo mundo tem mãe, até o pior canalha, o pior carrasco", como lembra uma personagem do livro O Filho da Mãe, do escritor carioca Bernardo Carvalho.

O romance integra o projeto Amores Expressos, que enviou 17 autores a diferentes cidades para depois escreverem uma história de amor. Carvalho isolou-se em São Petersburgo, na Rússia, onde viveu situações que não inspiram exatamente romantismo – embora seus dois protagonistas conheçam-se a certa altura da narrativa e vivam uma paixão desde o início fadada ao fracasso.

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Ainda em seus primeiros dias como estrangeiro, Carvalho foi assaltado duas vez e passou o restante de sua estada assolado pelo medo. É sob essa ótica do pânico – e do desamparo, por estar sozinho em um lugar estranho do qual não fala a língua – que ele vê a cidade, que poderia ser qualquer outra. Transforma-a em um lugar inóspito e violento, cujas avenidas largas, construídas "segundo a lógica da visibilidade total", ampliam em dimensão assombrosa a vulnerabilidade dos personagens que, como o autor, não pertencem àquele lugar. "(...) Sempre haverá alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste e, em especial, nesta cidade", escreve.

Filhos extraviados

Carvalho usa como pano de fundo a segunda guerra da Chechênia, em 2003, para contar histórias que se entrelaçam, vividas por mães culpadas, filhos extraviados e pais ausentes. Às vésperas das comemorações do tricentenário de São Petersburgo, uma mulher que sabe que irá morrer em breve procura a coordenadora do Comitê das Mães dos Soldados para salvar um filho que nunca teve. Como se, antes de morrer, para se sentir mulher por inteiro, precisasse compartilhar a dor das mães que lutam sem trégua para reaver os filhos, ou o corpo dos filhos, enviados à guerra ou sequestrados pelos militares em troca de resgate.

A partir da conversa das duas mulheres, Carvalho conduz a narrativa que gira em torno de dois personagens, os jovens Ruslan e Andrei, checheno e russo, respectivamente. O primeiro, abandonado pela mãe ainda bebê, foi criado pela avó, que o salva da guerra com a própria vida, enviando-o a São Petersburgo. Ali, ele conhece a mãe, que o rechaça para não ter de enfrentar a reação do marido e dos filhos.

Outra mãe fraca não enfrenta os desmandos do marido que, com ódio do enteado, filho do primeiro casamento da esposa com um brasileiro, obriga-o a se alistar no Exército. O filho é Andrei, que, ao fugir do quartel em São Petersburgo, é roubado – e se apaixona pelo batedor de carteiras.

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Para contar sua história, Carvalho apropria-se, sem soar artificial, de questões contemporâneas como a xenofobia e a homofobia, que transparecem nos atos e palavras de Maksim, líder de uma gangue de skin heads, ao saber da existência de Ruslan, seu irmão "bunda-preta": "Um irmão do Cáucaso é pior do que morrer, do que nascer cego ou preto".

Os pais de Ruslan e Andrei aparecem em cenários como a Floresta Amazônica e o Mar do Japão, envolvidos em questões ambientais como a destinação ilegal do lixo nuclear e o tráfico de plantas silvestres. As escolhas do autor, no entanto, não soam exóticas, como pode parecer à primeira vista. São metáforas perfeitas para tratar da culpa dos pais.

Além do entrelace de histórias, Carvalho usa outros recursos criativos como, por exemplo, quando muda o foco narrativo a um simples tocar de um telefone: "Da escada, Roman ouviu os gritos do irmão, que discutia com a mãe. Depois de fechar a porta, assim que tira os sapatos, no hall de entrada, ouve o telefone e corre para atender. Dmítri lhe diz que não virá jantar. Está atolado de trabalho. Talvez tenha de virar a noite no escritório. Mente. Na verdade, está pronto para sair, com a maleta na mão. Despede-se do filho, desliga o telefone e sai do escritório".

Serviço: O Filho da Mãe, de Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 208 págs., R$ 30.