Quarenta e cinco anos depois da publicação pela J. Ozon, sai uma nova edição dos contos de A Vida como Ela É..., de Nelson Rodrigues (Agir, 608 págs., R$ 59,90). Ao contrário da primeira, apresentada em dois volumes, a Agir preferiu condensar os cem contos, selecionados pelo próprio autor, num só livro de acabamento caprichado.

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No início dos anos 90, a Companhia das Letras já havia reeditado os textos, escritos para o extinto jornal Última Hora, do Rio de Janeiro. Foram dois volumes dentro na coleção sob coordenação de Ruy Castro. A diferença essencial entre as edições reside no organizador: Ruy Castro em uma e o próprio Nelson em outra. Castro não obedeceu fielmente à seleção de Nelson e, com isso, deixou de fora quase 60 contos incluídos na versão da Agir.

O tremendo sucesso popular de A Vida como Ela É... se inscreveu na cultura brasileira e rendeu ainda uma coletânea na década de 70, intitulada Elas Gostam de Apanhar, além de três revistas populares, lançadas no Rio de Janeiro, na década de 50, com o título da coluna, nas quais chama a atenção o conteúdo, digamos, erótico das capas e das ilustrações. Também na mesma época, foi lançado pela Odeon, um LP com quatro contos, "O Monstro", "A Noiva da Morte", "O Justo" e "O Escravo Etíope", interpretados à maneira das extintas novelas radiofônicas. A mesma exploração comercial do erótico é vista no disco. Embora fiel ao conteúdo, há enxertos de palavrões que não eram usados por Nelson e, na capa há um homem esbofeteando uma mulher. No cinema, o conto A Dama do Lotação (1978), foi adaptado por Neville d’Almeida, dentro de sua proposta "chanchada com conteúdo", com Sônia Braga no papel-título. Até hoje, A Dama... figura entre as maiores bilheterias do cinema nacional. Com proposta cinematográfica diferente de Neville, em 1999, foi a vez de Andrucha Waddington adaptar o conto As Gêmeas, com Fernanda Torres no papel principal. O mais conhecido do público, porém, foram os 40 episódios de A Vida... dirigidos, em estilo noir, por Daniel Filho para a Rede Globo, em meados da década de 90. Aí não teve erro. A obra tornou-se unânime.

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Maldito

Por vários motivos os contos de A Vida como Ela É marcaram indelevelmente a obra do escritor Nelson Rodrigues. No ano de 1950, desempregado e mais maldito do que nunca, em função da censura, do desprezo de parte da crítica especializada e das vaias do público às quatro peças míticas que compõem o que o autor denominou "teatro desagradável": Álbum de Família (1945), Anjo Negro (1946), Senhora dos Afogados (1947) e Dorotéia (1949), Nelson Rodrigues transitava no limite estreito entre o ostracismo e o insucesso.

A guinada viria justamente no ano seguinte, 1951, quando foi trabalhar no jornal getulista de Samuel Wainer, Última Hora. Calcada nas páginas policiais, a seção Atire a Primeira Pedra deveria ser uma espécie de comentário ficcional de alguma notícia diária. Foi bem mais do que isso. Rebatizada por Nelson para A Vida como Ela É...., tributaria apenas da imaginação do autor e não mais das noticias diárias, os contos que a compõe incendiaram o conservadorismo carioca e fizeram do autor sucesso popular inquestionável. E por uma longa década, obstinado e paciente como um remador de Ben-Hur, Nelson meditou sobre o amor, a morte e o desejo, escondidos muitas vezes sob o tema universal do adultério.

Em proporção avassaladora, o adultério, principalmente o feminino (segundo Nelson, por solicitação do público) é o mote principal das quase duas mil histórias dos dez anos de A Vida como Ela É... É verdade que o sucesso popular não era estranho para o autor. Seu folhetim de estréia, Meu Destino É Pecar, sob pseudônimo Suzana Flag, multiplicou por dez as vendas do matutino O Jornal na década de 40. Mas é diferente. O pseudônimo feminino era justamente para não contaminar seu nome – vinculado à alta literatura por meio do teatro – com exercícios folhetinescos menores. Com A Vida como Ela É, Nelson dispensa o pseudônimo e talvez por isso, mas não só, seu texto ganha em porte literário.

Efeito colateral

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Os temas de A Vida como Ela É municiaram a crítica moralista, vinda da direita, que transformaram Nelson Rodrigues num tarado irrecuperável. Como o jornal de Wainer era getulista de corpo e alma, a ironia do perspicaz político Carlos Lacerda, adversário de Vargas, feria o dramaturgo, responsável por boa parte da popularidade do jornal, mas visava principalmente o ditador. A fama de tarado de suspensórios, desagregador da família, forjou-se, principalmente nessas época, graças à oratória eficaz de Lacerda, que, no ápice do exagero, apontava Rodrigues como comunista. Esta polêmica, alimentada muitas vezes por motivos comerciais, até hoje emoldura diversas leituras da obra de Nelson, inclusive a teatral.

O leitor atual, mesmo que não acompanhe as nuances da obra de Nelson e dispense influências diversas e polêmicas variadas, terá um bom livro nas mãos. Talvez A Vida como Ela É... não seja o que de melhor legou, mas está longe de ser dispensável. Além da verve teatral, a linguagem enxuta e pontual de Nelson, sem literatices (como dele um dia falou Manuel Bandeira), flui com naturalidade e torna a leitura agradável e divertida. Mas é preciso advertir o leitor. É agradável, mas não fácil. Ele nos envolve e nem sempre sabemos de que forma. Como trata do desejo que, paradoxalmente, nos move e nos paralisa, é melhor ter bom-humor para a empreitada. Humor, não comicidade. Rir de si próprio e não apenas debochar de terceiros. Para Nelson, o desejo é triste como a vida. E o homem sofre não porque sabe que vai morrer, mas porque vive.

Marcio Robert é psicanalista e mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

Especial para o Caderno G