Poucos são os críticos ou teóricos que podem orgulhar-se de ter atravessado com sucesso a fronteira que os separa da criação artística. Uma exceção a essa regra, talvez uma das mais notáveis, é o britânico E. M. Forster (1879-1970). Ele é o autor de Aspectos do Romance, obra de teoria literária considerada um clássico do gênero. Lido, estudado e discutido em cursos de literatura ao redor do mundo. O escritor, contudo, também deixou como legado à posteridade um punhado de romances, listados entre os mais importantes da língua inglesa na virada do século 20.
O cinema, a partir da década de 80, foi um dos maiores responsáveis pela difusão e popularização internacional da obra de Forster. O diretor norte-americano James Ivory, em parceria com o produtor indiano Ismail Marchant, levou para tela os romances Uma Janela para o Amor, Maurice (de inspiração autobiográfica e publicado postumamente) e Retorno a Howards End. A trilogia cujas adaptações venceram vários Oscars e prêmios em festivais internacionais captou como poucas manifestações artísticas o processo de transição social pelo qual a Inglaterra do final do século 19 atravessou. São verdadeiros estudos sobre o confronto de classes, a decadência da aristocracia e a falência do rígido código de valores de uma sociedade que tentava desvencilhar-se do peso vitoriano e adentrar, de alguma forma, a modernidade.
Entretanto, a obra literária mais conhecida de Forster, ele mesmo oriundo da alta burguesia rural inglesa, é o romance Uma Passagem para Índia, também transposta para o cinema, sob a batuta do mestre David Lean, diretor dos clássicos Lawrence da Arábia e Grandes Esperanças. Viajante apaixonado por terras distantes e exóticas, culturas que lhe permitissem uma fuga da ordem social em que estava inserido, o escritor constrói ao longo das páginas do livro agora relançado no Brasil em nova tradução de Cristina Cupertino uma trama fascinante, que tem como mote o choque cultural entre colonizadores britânicos e a Índia.
No centro do enredo, conduzido por um realismo psicológico equiparável a Virginia woolf e Machado de Assis, está Ada, inglesa que viaja ao Oriente para visitar o futuro marido. Interessada e até certo ponto atraída pelo exotismo dos colonizados, a personagem, sem dar conta de seus bolqueios e preconceitos, acaba tornando-se protagonista de um incidente de proporções trágicas.
Durante uma visita ao conhecido conjunto de cavernas de Marabar, Ada, perturbada pela inesperada atração que sente por seu guia, tem um surto psicótico. Em vez de assumir para si mesma que foi capaz de sentir desejo por um homem de outra etnia, de pele escura e modos diversos, ela inventa ter sido vítima de uma tentativa de estupro. O culpado é justamente Aziz, o respeitado médico que despertou-lhe uma libido que desconhecia.
Como as autoridades locais estão sob o jugo do Império Britânico, a versão de Ada é aceita como verdade e o acusado, antes um subserviente e bajulador servo da influência do colonizador, é preso e julgado por um crime que não cometeu.
Forster, que era homossexual mas jamais admitiu publicamente sua orientação, faz de Uma Passagem para a Índia um estudo perturbador sobre o embate entre culturas, traçando um retrato complexo da repressão à qual os ingleses da época estavam submetidos. Por outro lado, a obra também pode ser interpretada como um poderoso libelo político, ao tecer críticas não muito sutis à perversidade da dominação britânica na Índia, por meio da imposição de valores e do desrespeito às diferenças de usos e costumes.