"O poder temporal o cetro mostra,
Atributo do medo e majestade,
do respeito e temor que os Reis inspiram;
Mas a graça muito alto sempre paira
Das injunções do cetro, pois seu trono
No próprio coração dos Reis; se firma;
Atributo é de deus; quase divino
Fica o poder terreno nos instantes
Em que a justiça se associa à graça
Por tudo isso, Shylock, conquanto estejas
baseado no direito considera
que só pelos ditames da justiça
nenhum de nós a salvação consegue.
Para obter graça todos nós rezamos;
E é essa mesma oração que nos ensina
a usar também de graça.
Quanto disse, foi para mitigar o teu direito;
Mas se nele insistires, o severo
Tribunal de Veneza há de sentença
Dar contra o mercador". Discurso de Pórcia, a personagem advogado do julgamento da peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare.
É célebre a constatação de Sigmund Freud (1856-1939) que, depois de se debruçar no estudo das obras de William Shakespeare (1564-1616), no início do século passado, afirmou que na dramaturgia do inglês já estariam contidos todos os temais principais da psicanálise.
Devotos da literatura do bardo vão mais longe. Toda a inteligência e tragédia humana estão antevistas nos folios de seus sonetos e, essencialmente, em peças de teatro.
Exageros à parte, no recém-lançado livro Mil Vezes Mais Justo (WMF Martins Fontes), o professor de Direito Constitucional da Universidade de Nova York Kenji Yoshino investiga, de forma criativa e provocativa, a relação entre as peças de Shakespeare e aspectos contemporâneos do Direito.
Para Yoshino, que é titular de uma concorrida cadeira de Direito e Literatura na universidade, "ler Shakespeare é sentir-se incluído. As peças contêm cada palavra que conheço, praticamente cada tipo de personalidade que já encontrei e praticamente cada ideia que já tive", afirma.
Para ele, o teatro de Shakespeare serve tão bem ao estudo do Direito e da Justiça, pois se o escritor inglês "não era um jurista, como chegou a afirmar o escritor Mark Twain(1835-1910), conhecia bastante o Direito. Mas somente na medida em que conhecia bastante tudo. As peças, contudo, também são pioneiras no que diz respeito a temas de justiça social", observa.
Yoshino não é o único a pensar assim. Há inúmeros trabalhos acadêmicos escritos sobre esse tema. Na prestigiada escola de Direito da UniSinos, em São Leopoldo (RS), o jurista Lênio Streck mantém um programa na emissora de tevê universitária em que convida um jurista e um professor de Letras para debater os aspectos jurídicos na obra do bardo.
Em Nova York é famosa uma confraria de proeminentes advogados e juízes que se reúnem mensalmente para falar sobre Direito e as farsas e tragédias de Shakespeare.
O advogado e professor carioca José Roberto de Castro Neves, autor do livro Medida por Medida O Direito em Shakespeare (GZ,2013), afirma que a literatura do dramaturgo serve também para que tomemos contato com a nossa própria natureza pessoal e social. "Shakespeare é um grande leitor. Não somos nós que o lemos e sim ele que nos lê", diz.
Castro Neves ressalta que a proximidade entre o Direito e os textos não se dá apenas no campo das ideias, já que em pelo menos 20 peças das cerca de 90 que compõem as obras completas do autor há uma cena de julgamento.
"Estas cenas de julgamento, além de serem um recurso dramático para as narrativas, serviam muito bem para aproximar a montagem da plateia, pois muito do público era ligado ao Direito e algumas peças foram apresentadas nas escolas de advocacia da época", conta.
Ele destaca que em boa parte das peças surgem discussões sobre institutos e temas que abrangem boa parte do largo espectro de questões de que o Direito tenta se ocupar. "Há muita discussão sobre Teoria do Estado e organização política. De Direito Civil e das obrigações nos contratos e sucessões, de Direito Penal, além de serem retratadas com precisão as figuras do soberano, do juiz e do advogado com precisão", aponta.
Moral
O advogado curitibano Guilherme Scheidt Mader, estudioso da relação entre os temas jurídicos e literários, ressalta que a moral social, um dos temas fundadores do Direito, é amplamente explorada na obra do bardo. Ele cita como exemplo a referência feita pelo autor Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo (1932), em que os conflitos vivenciados pelo intitulado selvagem são constantemente relacionados às narrativas de Shakespeare, quando aquele vem a confrontar os valores e regras da sociedade futurista criada em ficção por Huxley, em contraponto àquela moral social retratada nas obras de Shakespeare e que permanece contemporânea em diversos aspectos na sociedade moderna.
"O Direito tem dentre seus objetivos a defesa e promoção da paz social, mediante a regulamentação das mais variadas relações havidas em sociedade e em um Estado de Direito, e sem a observância à moral social e à ética social, a pacificação e regulamentação das relações dificilmente poderia ser alcançada e defendida adequadamente", explica Mader.
Ele avalia que em obras como O Mercador de Veneza, a relação com o Direito "fica muito mais evidente, contudo em diversas obras do autor os conflitos morais e sociais são parte fundamental das tramas narradas".
Para Mader, "devemos considerar que por mais que a moral social não se mostre como a única fonte do Direito, o Direito tratando-se de realidade presente nas relações sociais e do Estado, não deveria afastar-se em demasia da moral social, pois, em o fazendo, arrisca perder-se no caminho de atingir a sua finalidade".
Justiça
Já em seu livro, o professor Yoshino chama a atenção para a quantidade de questões contemporâneas relacionadas à justiça que a obra de Shakespeare ilumina.
"Neste sentido a tragédia Tito Andrônico pode dizer muito sobre as campanhas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, porque descreve "como ocorre uma escalada dos ciclos de vingança quando não existe nenhuma autoral central digna do nome e de legitimidade", exemplifica.
No texto de apresentação do livro, o crítico Harold Bloom avalia que o Shakespeare que se revela quando contraposto ao Direito é "um continente de muitas almas, que destrincha as vastas e complexas estruturas que devem imbuir o papel da lei em nossa luta por uma sociedade justa".
Uma luta que não é possível sem a palavra escrita pelo bardo, segundo Yoshino: "o melhor uso que os operadores do direito podem dar ao encantamento que a literatura de Shakespeare desperta em quem a lê é deixar que ela nos arraste em direção à Justiça".
"A leitura de Shakespeare estimula uma troca de ideias sobre justiça que talvez não fosse possível de outro modo. Pode ser que as respostas de Shakespeare a nossos dilemas não se apliquem a todos os casos. No entanto, elas nos ensinam a não subestimar a poder da retórica", conclui.
Henrique V
O caso
A tragédia histórica retrata a figura de um dos mais importantes monarcas ingleses, o rei-herói que governou de 1413 a 1422, pacificando internamente a Inglaterra e consolidando a autoridade da monarquia.
Os Fatos
O texto narra um período específico, a chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453), em que o rei comanda sua campanha de invasão à França. O ponto alto é o célebre discurso em que Henrique V conclama seus homens a lutarem com vigor, colocando de lado as distinções sociais.
O Direito
A peça fala sobre a tentativa de se construir uma sociedade mais justa, informada ainda pelo heroísmo e carisma dos reis guerreiros da Idade Média e as noções modernas de teoria do estado, além de tratar de forma sagaz a questão do direito das sucessões. "Henrique V é claramente uma peça que tenta mostrar o que um bom rei deve fazer, a importância de uma liderança sólida que esteja atenta aos anseios do povo", observa Castro Neves.
Shakespeare levanta questões sobre a possibilidade existir um governo justo. "Henrique recebe a descrição mais positiva possível e essa autoridade incontestável suscita o temor de que governo justo nada mais é que o nome que o poder dá a si mesmo. E na medida que o universo de Shakespeare pretenda representar o nosso, deveríamos nos questionar se acreditamos em autoridade legítima hoje", indaga Yoshino.
Antônio
O caso
A história O Mercador de Veneza mostra o antagonismo entre Antônio um comerciante cristão de prestígio na cidade e Shylock e um usurário judeu que leva o outro ao tribunal no intuito de cobrar uma dívida.
Os fatos
Na nota promissória de Antonio a Shylock, há uma cláusula de que o devedor deve empenhar uma libra de sua própria carne como garantia. A execução deste título de crédito é o tema central da peça. Um jurista emérito é chamado para presidir o julgamento e, disfarçada, a esperta Pórcia assume o papel de advogada do mercador.
O Direito
A peça é uma verdadeira aula de Direito Civil. Ao redor do julgamento do caso principal, baseado não nas verdadeiras leis venezianas, de tradição romano-germânica, e sim na Common Law inglesa, fundada na busca de equidade. Vários princípios fundamentais do direito podem ser analisados, como o da iniciativa, do impulso processual, do contraditório e do devido processo legal, por exemplo. É uma boa discussão sobre contratos e direito das obrigações.
Há outra grande discussão sobre a habilidade retórica dos advogados. "O julgamento na peça é uma tentativa da lei de submeter os seres humanos que vivem sob sua égide. Tem base num documento legal. Porém, ao final, Pórcia mostra que o advogado não precisa estar sujeito a documentos e regras nos casos concretos, e encontra uma forma de fazer valer a sua vontade. Neste momento, ele se torna o símbolo do advogado, e sua capacidade de fazer o argumento mais fraco parecer mais forte", afirma Yoshino.
Hamlet
O caso
O príncipe Hamlet da Dinamarca é visitado pelo fantasma do seu pai, o rei Hamlet, que lhe conta que foi assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, e pede a seu filho que vingue sua morte. Cláudio é o atual rei, posto alcançado após o casamento com a viúva Gertrude. Hamlet está determinado a vingar o pai, entretanto, adia a vingança por estar absorto em dúvidas filosóficas e morais que o fazem duvidar da própria saúde mental.
Os fatos
O príncipe dinamarquês tem várias chances de vingar a morte do pai, mas adia o ato final, decisão que provoca pelos menos outras sete mortes.
O Direito
O professor José Roberto de Castro Neves avalia que este pudor em concretizar a vingança pode ter origem nos estudos do príncipe na Alemanha, um povo política e socialmente mais evoluído que a bárbara Dinamarca da época. "Uma das leituras possíveis é que Hamlet relutava em restabelecer a barbárie que fundou a política de seu reino", pondera. Segundo Kenji Yoshino, a condição intelectual de Hamlet é a causa principal da protelação. Para o autor, a "protelação decorre de um compromisso intelectual de Hamlet com a Justiça".
Como foi confrontado com uma grande injustiça, Hamlet se vê obrigado a corrigi-la, ainda mais pelo fato de seu adversário controlar o Estado. Para Yoshino, neste ponto Hamlet antecipa operadores de direito que se entregam a causas utópicas como a da igualdade racial no século passado, ou abolição do sistema penal hoje em dia na busca da Justiça Perfeita.
Otelo
O caso
Otelo é um general veneziano que se casa às escondidas com Desdêmona, a filha de um rico senador veneziano. Otelo é acusado de ter enfeitiçado a esposa e vai a julgamento. Seu alferes, o ardiloso Iago, o induz a acreditar que sua esposa o trai. Ele apresenta uma prova material, um lenço branco usado pelo suposto amante, Cássio. Os fatos
No julgamento sobre bruxaria Otelo é absolvido. Cego de ciúme, Otelo mata Cássio e Desdêmona e se mata ao descobrir que tinha sido enganado por Iago.
O Direito
A peça fala das sutilezas do processo de apreciação de provas nos processos judiciais. Para Kenji Yoshino o lenço branco encobre simbolicamente todas as outras evidências de culpa ou inocência. "Otelo é uma peça sobre epistemologia sobre como sabemos o que sabemos. Uma representada pelos nobres venezianos age de maneira coletiva e racional e conduz a um veredito, uma declaração. A outra representada por Otelo move-se de maneira isolada e apaixonada e conduz tragicamente ao erro", afirma.
Castro Neves avalia que o julgamento a que Otelo é submetido expõe uma característica indesejável mas real do processo judicial: o julgamento conforme a conveniência do estado. "Os nobres não podem condenar Otelo, pois precisam dele para a defesa do território. Assim, o julgamento é orientado e Shakespeare nos mostra como podem ser sutis estes direcionamentos dos tribunais", observa.