• Carregando...

A preocupação imemorial do ser humano com a preservação de sua história pessoal deu origem a um número literalmente incalculável de narrativas de expressão do eu, quer sejam ou não categorizadas como autobiografia, termo que começou a ser utilizado, em várias formas, desde o final do século 18, na Inglaterra e na Alemanha.

No processo de reconstituição da memória, o relato autobiográfico conduz inevitavelmente à auto-análise e, como corolário, a questões de identidade. A tradição do auto-exame, característica da filosofia ocidental é, portanto, uma das raízes do gênero memorialístico, em que se incluem memórias, autobiografia, diários e cartas.

O pesquisador James Goodwin observa que os filósofos estóicos se voltam tanto para o interior, para o exame de questões de consciência, como para o exterior, considerando a condição moral do universo. Esta perspectiva dualística se transforma em um poderoso recurso para a autobiografia, a exemplo de As Confissões, de Santo Agostinho – obra comumente identificada como a primeira autobiografia propriamente dita, na literatura ocidental, escrita aproximadamente no ano 400 –, e nas Confissões de Jean-Jacques Rousseau, escritas entre 1766 e 1770.

O objetivo religioso comanda a seleção de Agostinho de incidentes de sua vida secular que o conduziram à conversão, e que melhor representam a experiência do homem cristão e mortal – indigno de salvação mas esperançoso de obter a Graça Divina. Já as confissões de Rousseau correspondem mais a um auto-retrato em que, ao invés de se dirigir a Deus, o autor coloca o leitor na posição de juiz da credibilidade de seu texto e da sua integridade como homem. Confissão não é para ele um ato de humildade ou adoração, mas um modo de revelar suas qualidades individuais únicas.

Ao contar a história de sua vida, Rousseau capta virtualmente todas as características da autobiografia moderna: a consciência de sua singularidade como indivíduo; a crença na escrita autobiográfica como veículo de um conhecimento mais amplo de si mesmo que permite se dar a conhecer ao leitor.

Adiantando-se um século a Freud, as Confissões recuperam a infância como espaço-chave da personalidade, abordando aspectos até então ignorados, como a sexualidade infantil e o auto-erotismo. Rousseau abre, pois, as comportas da autobiografia moderna, ao mesmo tempo em que inicia toda a ampla problemática relacionada com ela, centrada, essencialmente, no questionamento da autenticidade das lembranças, bem como no papel da imaginação nesses relatos.

O discurso que pretende descrever uma história do eu tem evidente caráter ficcional. As autobiografias não são simples crônicas de fatos, mas a manipulação engenhosa de detalhes e acontecimentos que adquirem o status de fato. Desta forma o estatuto referencial do relato autobiográfico suscita evidente questionamento, que teóricos vêm tentando resolver por meio da diferenciação entre o ficcional e o não-ficcional; entre a autobiografia e o simplesmente autobiográfico; entre o que se denomina autobiografia propriamente dita e o romance autobiográfico, ou ainda a autobiografia ficcional.

É provável que ninguém como o francês Philippe Lejeune tenha sabido até agora enfrentar toda essa problemática, especialmente no estudo seminal "O Pacto Autobiográfico", de 1973. Este pacto é o conceito central de sua teorização sobre o gênero, uma espécie de acordo entre quem lê e acredita estar diante de revelações verdadeiras da vida íntima do autor, e quem escreve e deve manter o compromisso com a veracidade das revelações. A condição indispensável para gerar esse contrato implícito é a identificação autor-narrador-personagem, devendo o nome do autor figurar na capa do livro.

Um relato autobiográfico seria então um modo de leitura, um efeito contratual historicamente variável, tendo-se em vista a posição do leitor e não o interior do texto ou os cânones de um gênero.

Não se resolve, no entanto, a questão crucial das chamadas narrativas de vida, origem de inúmeras discussões, ou seja, o caráter ficcional do discurso que pretende descrever a história de um eu. As palavras de Ernest Hemingway, no prefácio de seu livro de memórias, Paris É uma Festa, ilustram adequadamente o problema: "Se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção".

De fato, um exame da prática do gênero autobiográfico na literatura ocidental, nos leva à conclusão da importância da autobiografia não só como testemunho da experiência de vida individual , mas como criação estética, para o que se utiliza de todos os recursos da arte literária.

Mail Marques de Azevedo é professora do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutora em Letras – Língua e Literaturas de Língua Inglesa – pela Universidade de São Paulo (USP).

Veja também
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]