Recife Leia abaixo trechos da entrevista concedida pelo escritor Ariano Suassuna em sua casa na capital pernambucana. Em tom sincero, sem rodeios, fala de televisão, literatura, história, cultura popular e, é claro, de sua própria obra, sem esquecer do famigerado romance inacabado.
Ao completar 80 anos, qual o balanço que o senhor faz de sua vida pessoal, feliz com a família, os netos, e uma vida em comum de seis décadas com a mulher que, segundo o senhor, lhe devolveu a capacidade de sorrir?
Do ponto de vista pessoal, me realizei totalmente. Sempre sonhei com uma mulher bonita. Achava que de feio só bastava eu. Lembro quando conheci Zélia. Eu vinha pela Rua Nova e lá estava na calçada aquela figura loira e radiosa, me fitando. Aí fiquei encantado e disse, hoje achei na Rua Nova uma mocinha muito bonita, que ficou me olhando com jeito de alma que está querendo asa. Depois minha irmã descobriu que ela era irmã de uma colega de trabalho, e me confidenciou: "ela também está encantada por você". Alguns dias depois a encontrei na rua, já sabia seu nome. Como sempre fui muito metido, indaguei "Zélia, você se incomoda de eu lhe conhecer, assim... sem ninguém para apresentar?" Ela disse "não". E fiz de propósito, no dia 19 de julho, que é o aniversário dela. Namoramos seis meses e a 6 de janeiro de 1948 pedi Zélia em casamento. O dia mais importante da minha vida é esse. Como resultado, temos seis filhos maravilhosos e 15 netos.
O senhor diz sempre ser um escritor de poucos leitores e poucos livros. Mas como explica o sucesso atual?
É uma coisa muito relativa. Uma vez, rapazes e moças pediram para ser fotografados ao meu lado. Eu consenti e quando terminaram de tirar os retratos, uma mulher que passava gritou: "Seu Zé, também quero um retrato". Respondi: "Pra quê, você nem sabe quem sou eu?". E ela respondeu: "Sei não, mas tá todo mundo querendo, eu também quero". Eu acho que isso se deve também à televisão. Porque antes não acontecia, não. Depois da exibição do Auto da Compadecida na televisão, passei a ser abordado nas ruas.
O senhor passou um longo tempo resistindo à TV e hoje atribui sua popularidade a ela. Não é curioso?
Nunca fui contra a TV. Discordo da forma como ela é usada em alguns casos. A gente tem que defender a TV, porque ela não é só arte, é entretenimento, é noticiário. Eu não entrava em entendimento com a televisão porque queriam que eu me adaptasse a parâmetros artísticos que não eram os meus. Quando fui procurado por Luiz Fernando Carvalho tive com ele um entendimento imediato e juntos fizemos a tragédia Uma Mulher Vestida de Sol, primeira peça que escrevi, e também A Farsa da Boa Preguiça, uma comédia. Depois veio o trabalho com Guel Arraes, que conheci menino.
Na década de 70, foi lançado o Movimento Armorial, cujas vertentes podem ser observadas na música, no teatro, na dança. Depois dele o Brasil pode se considerar mais brasileiro?
O objetivo do movimento ainda permanece atual. O principal motivo para sua criação era o processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira, que infelizmente ainda está em curso. Em 1981, o senhor divulgou uma carta dizendo "não me cobrem mais livros que não estou mais escrevendo e pelos quais perdi o interesse". Por quê?
Naquele momento eu vivia uma crise muito ruim. Chegara à conclusão de que fizera erros graves de interpretação da História brasileira.
Que tipo de erro lhe deixou assim tão aturdido?
Sou de origem rural. Sofri duas influências poderosas na minha vida, a do meu pai e a de Euclides da Cunha. Todos dois davam mais importância ao campo do que à cidade. Depois do assassinato do meu pai, comecei a ver na imprensa da Paraíba ataques violentos. Naqueles embates políticos da revolução de 1930, meu pai era líder das forças rurais. O lado contrário ao meu pai foi o vencedor. Como sempre acontece, começaram a apresentar meu pai e as forças rurais como o mal. E João Pessoa e o urbano representavam o bem. Comecei a reagir de maneira contrária. Pensei "o rural vai ser o bem e o urbano será o mal". Machado de Assis dizia que existiam dois Brasis, o oficial e o real. Para ele o símbolo do Brasil oficial era a Rua do Ouvidor, falsificada e falsificadora. Ele reclamava dos navios, que nos traziam as miragens de uma civilização que recebíamos embaladas nos transtlânticos. Era uma "civilização de empréstimo que nos acotovela na rua do Ouvidor". E dizia que nós deixávamos de lado o sertão amplíssimo onde se desata o verdadeiro núcleo de nossa nacionalidade, ao mesmo passo que afirmava ser o sertanejo a rocha viva da raça. Eu lia isso e refletia. Quando via o crime que o Brasil oficial cometeu em Canudos eu pensava que o povo do Brasil real levantou a cabeça, o Brasil oficial e urbano e capitalista foi lá e cortou essa cabeça.
Se, como o senhor diz, a literatura é sua festa, sua música e sua dança, a demora para escrever um novo livro seria, então, um prazer?
Eu tenho prazer, gosto de escrever. Gosto que outras pessoas gostem do que escrevo, mas para mim o melhor momento é o da criação. Tenho uma felicidade imensa quando escrevo uma coisa que acho que está boa. O tormento são as interrupções.
Seu novo livro está sendo um mergulho tão profundo no seu universo interior quanto foi A Pedra do Reino?
Mais ainda. Inclusive porque se eu terminar esse livro como quero ele vai concluir A Pedra do Reino. Tanto que o personagem principal de A Pedra do Reino é personagem também do novo livro.
E o Brasil, real, que todo dia aparece nos jornais cheio de "espertos"? Como o senhor vê isso?
Com uma tristeza muito grande, com amargura. Mas talvez por ser velho vejo menos perplexo, porque não é a primeira vez. No mundo inteiro isso acontece, o ser humano é o mesmo. O que me alegra é que isso não é a maioria do povo brasileiro.
O senhor acha que é forte a cultura da periferia?
Acho. Mas os meios de comunicação de massa não estão dando oportunidade àquela cultura de tomar o caminho certo, ao meu ver a cultura brasileira. Recentemente, em uma reunião de segurança, uma autoridade começou a elogiar o hip hop, porque ele tira os jovens da droga. Eu discordei. Se tira da droga, ótimo. Mas existe forma de tirar da droga sem utilizar o que é uma violência contra nossa cultura. A gente pode combater a violência na periferia com armas que não precisam ser a violentação da cultura.
Ariano Suassuna, escritor e dramaturgo.
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