Clarice Lispector tinha o projeto de ultrapassar as palavras para descarregá-las de seus conteúdos, chegando assim ao vazio ao silêncio do deserto. Manoel de Barros pretendia retroceder até um momento em que as palavras não passassem de imagens brutas, de balbucios, desembocando, assim, na infância. É tensa a relação entre palavras e imagens. Daí o assombro provocado pela leitura dos poemas dos Cadernos de Pintura, de Walmir Ayala (Companhia Editora de Pernambuco, Recife). Ayala (1933-1991) foi um artista múltiplo, que transitou por várias áreas de expressão. Em muitos aspectos, esteve à frente de seu século. Foi também um importante crítico de arte. De sua relação com a arte, arrancou sua poesia.
Algumas jóias logo se destacam. O poema dedicado a Fayga Ostrower se resume a um verso: "incêndio numa folha de papel de seda". Ele serve de resumo, na verdade, para todo o livro. De uma tela de Tomie Ohtake, o poeta nos diz: "silencioso espasmo que fulgura". Fulgurar, como se sabe, é um sinônimo para relampejar. Diante da Vênus com Pássaros, de Milton Dacosta, o poeta resume: "Redonda, perfeita, suspirosa/ Vênus abre seu leque de preguiça". A poesia de Valmir Ayala é certeira. Para chegar às imagens, ele se apega aos recursos da precisão e da urgência. Enfrenta incêndios, espasmos, suspiros. E chega.
Como crítico de arte, Ayala inspeciona seus quadros para encontrar os homens que sob eles se escondem. Revira a arte para chegar ao humano. "Não aguento mais os neoconcretos./ Eu quero os neo-humanos", anota em seu primeiro "Poema crítico". Walmir Ayala escreve para achar os artistas que trabalham com o sangue. Cansou-se dos malabaristas de gabinete que fazem um jogo sutil para ingressar nas melhores salas. Despreza-os. "Há gente por aí criando com/ sangue suor e lágrima/ e estes muitas vezes amargam nas sarjetas". Um poema, dedicado a "O touro", de Moriconi, repete, nos últimos cinco versos, essa escolha: "Há sangue, sangue nos flancos/ claros do noturno touro/ sangrento e noturno touro/ pelo qual o ausente mouro/ cavalga um cavalo branco".
Ayala busca não só o homem que sangra, mas que fala. (A fala é sempre uma ferida aberta.) O homem que esboça sua língua. Aqui cabe pensar em um artista radical como Artur Bispo do Rosário, que registrou sobre uma de suas obras: "Eu preciso destas/ palavras escrita". Tinha consciência de um elo de que não podia escapar. Um vínculo que era, na verdade, um destino. Nenhum artista visual se livra da intrusão estridente das palavras. Para começar, quando ele pensa uma obra e em seus conceitos, é com as palavras que pensa. Feita a obra, quando o artista se espanta com o que fez, é com palavras também que reage.
Trabalhando com a poesia de Ayala, eu me lembro de Rafael Argullol (não consigo parar de ler seus escritos), para quem a imaginação é "uma viagem em todas as direções". A imaginação do poeta ou do artista engole o mundo, de modo indistinto e desregrado. Só depois o autor o trabalha para chegar à obra. Antes disso, porém, precisa vencer um incêndio. O artista não escapa dessa travessia tormentosa. Deve enfrentá-la, ou não criará. Está no poema que Ayala dedicado a Masaccio: "Um relance de morte/ põe azuis nos teus zelos,/ e uma noite perfeita/ comanda os teus cabelos". A arte inclui o risco. E inclui a rebeldia, recusa do já pronto, que Argullol define assim: "O amor à verdade prevalece sobre o temor à verdade".
Entende Ayala que, mesmo na arte abstrata, o corpo está presente. (Ninguém escapa do corpo e de suas leis.) Escreve em "Abstração", poema dedicado a Iberê Camargo: "Há um corpo que se joga num espaço de margens". A moldura limite que o artista se impõe para não enlouquecer também o enlouquece com suas exigências. É no seu interior que ele precisa gritar. É ali, naquela prisão, que ele deve desenhar a liberdade. Sua liberdade. Seu lançar-se "em todas as direções". Sobre Pablo Picasso, o poeta escreve: "Picasso era mil,/ era rosa, era azul / (no sonho entre um e outro/ era anil).
Os próprios poemas de Walmir Ayala comprovam as relações surpreendentes que existem entre a imagem e a palavra. Mas as imagens, em si mesmas, traçam igualmente uma escrita silenciosa. Em um poema a J. Adamoli, ele diz: "Tocam-se as cores em tênues fronteiras./ Tangem-se." Enquanto as mãos trabalham e as cores sincronizam, a alma do artista se agita. Algo também se passa em seu interior alguma coisa sem a qual a arte seria impossível, ou se tornaria (como tantas e tantas vezes) um exercício banal. Diz ainda no mesmo poema: "No nosso coração um veludo ansioso/ desenha a terra prometida".
Esse coração aflito precisa suportar seu mais difícil material: a ignorância. Diante de um dos bichos de Lygia Clark, constatando a muralha que separa o artista da obra, o poeta escreve: "Só ele sabe/ o gosto de seu minuto,/ só ele sabe/ da rosa da sua axila,/ só ele sabe/ do seu espelho e do óleo em suas vértebras expostas". O poeta trata aqui da cegueira, elemento crucial do ofício do artista. Lida com imagens, mas não vê. Como pode?
A ideia de que a cegueira é a escuridão absoluta é uma ideia falsa. Da mesma forma, não existe visão absoluta. Nós vemos, mas não vemos. E isso não é o mesmo que dizer que "ora vemos, ora não". É dizer exatamente: quando vemos uma coisa, no mesmo momento, e para que isso seja possível, não estamos vendo outras. Existe uma positividade do escuro: ele nos ajuda a ver. Talvez seja nessa margem escura que as palavras trafeguem.
Escreve Ayala no poema dedicado a Edith Behring: "Depois a treva/ com pulsações de claridade". Eis uma bela imagem para a arte: a da pulsação. Como se sabe, o pulso é um sinal indiscutível da vida. Nesse intervalo entre dilatação e contração, o poeta enxerga o essencial. No mesmo poema, ele o define: "o ardor da morte que se crispa". Há um recuo e é ali que a vida se instala. É nesse breve retrocesso da imagem que a palavra se instala. Ali ela incendeia. Ali o poeta permanece de pé.
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