Mitos crescem na medida em que estão mais distantes e etéreos, inalcançáveis, impalpáveis. Deles, curtimos a aura apenas. Bem mais complicado é viver como um mito, entre nós, anônimos habitantes do planeta. B.B. King, o rotundo dono de Lucille – sua idolatrada guitarra, o mais famoso instrumento do mundo do blues – brilha entre os bluesmen, contracena com mitos pop como Bono, Santana, Eric Clapton ou com cantoras de jazz como Diane Schuur. Espalha sua arte única com generosidade, sem nenhuma parcimônia.
Compartilha seu talento com todo mundo, como reza o espírito comunitário que viu nascer o gênero, ainda nos campos de algodão, nas décadas finais do século 19. Os escravos obrigados a cantar hinos religiosos protestantes junto com seus donos preservavam sua música nos dias de trabalho duro e nas noites regadas a Bourbon. A música divina (o gospel) gerou de suas entranhas a música do diabo (o blues), já rezava um clássico blues de Robert Johnson.
Morte
B.B. King morreu na madrugada de sexta-feira (15) em Las Vegas, Nevada (EUA), aos 89 anos. Segundo o advogado do músico, ele havia sido hospitalizado em abril. Em sua carreira, King venceu 15 vezes o prêmio Grammy, mais do que qualquer outro músico de blues.
Formalmente, o blues é o gênero mais simples das músicas populares, com seus 12 compassos e uma harmonia de três acordes. Mas a bem comportada harmonia da música europeia branca misturou-se com as escalas africanas, gerando as “blue notes” que fazem a glória dos grandes guitarristas – como B.B. King. Uma forma decisiva para os partos do jazz, seu filho dileto no início do século 20, e do rock, seu neto, já nos anos 50.
King é personagem-chave do blues porque aprendeu o gênero e o deglutiu ainda em seu berço rural no Delta do Mississipi; e, logo depois da Segunda Guerra Mundial, foi um dos grandes, se não o maior, responsável por sua urbanização. Trocou os anéis e as cordas de arame pelas nascentes guitarras, muito mais poderosas.
O blues perdeu seu rei e os Estados Unidos perderam uma lenda. Nesta noite haverá uma sessão genial de blues no céu.
Mas manteve as raízes intactas. Por exemplo, o gospel, sempre presente em seu jeito de cantar cheio de fervor (religioso, diriam os mais fanáticos, mesmo com temas libidinosos). Por outro lado, absorveu as “modernidades” urbanas. Encantou-se com a guitarra elétrica de Charlie Christian e de T. Bone Walker. Mas não os imitou. Criou um estilo próprio, de longas notas lancinantes e vibratos muito amplos. Imagine alguém capaz de fundir, no toque e na voz, as raízes com um refinamento inesperado. Desse modo, B.B. King levava ao delírio as plateias negras e ao mesmo tempo conquistava os brancos empertigados.
Ele gravou centenas de discos ao longo de mais de meio século de carreira. Existem muitas coletâneas “best of”. Melhor ficar com dois “meetings”. Primeiro, o “summit” inigualável, gravado em 2000, com Eric Clapton. Riding with the King compõe-se de 12 clássicos do blues, como “Ten long years”, “Worried life Blues”, “Three O’Clock Blues” e, claro, a faixa-título. Antológico.
E em Heart to Heart, CD de 1994, a Lucille de King namora com o piano e a voz de Diane Schuur. Eles cantam e tocam de tudo. Até “I can’t stop loving you” e “It had to be you”, evocando outro gênio, Ray Charles, de percurso semelhante ao de King: transplantou o balanço gospel para o rhythm’n’blues.
Sozinho, com Clapton ou Schuur, ele jamais perde a realeza. Pudera, ele “é” o blues encarnado.
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