Belchior voltou a ser notícia em 2009, depois que duas reportagens do Fantástico, da Rede Globo, terem abordado o “desaparecimento” do músico cearense. Por irônico que parecesse, o trovador saiu do ostracismo justamente por causa de seu ostracismo. Desde então, fãs, jornalistas, músicos de curiosos passaram a olhar de forma mais atenta para o “rapaz latino-americano” e sua obra. Neste domingo (30), nova surpresa geral: Belchior morreu, aos 70 anos, em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul.
Para além de tudo isso, Belchior está bem acima da caricatura criada com as reportagens sobre seu autoexílio – tratada, de modo geral, como uma “fuga” motivada por dívidas. Ele mesmo não entendeu o súbito interesse que pairava sobre si, desde então. “Eu não sou uma celebridade”, disse, à repórter Sônia Bridi, do Fantástico.
De fato, Belchior não era um artista “popular”, na acepção mais rasteira da palavra (nos últimos anos, não aparecia em programas de tevê e suas músicas não tocavam em rádio). Já não era um artista de “sucesso” (desses que se desfazem a cada hit do verão), chegou a ser motivo de piada por sua voz anasalada, mas era dono de uma obra densa, profunda e filosófica.
Seu primeiro disco, “Mote e Glosa” passou praticamente despercebido. Apesar disso, é quase um manifesto do que sua obra viria a ser. Estão ali os elementos regionais – com orquestra de pífanos e tudo – e um anseio de se fazer universal, acompanhado de uma proposição obsessiva: trazer “o novo” à música brasileira, em um momento em que a Bossa Nova dava sinais de cansaço. Neste álbum, já aparecem canções como “A Palo Seco” (“Eu quero é que este canto/ torto, feito faca, corte a carne de vocês”), a belíssima “Senhor Dono da Casa” e “Todo Sujo de Batom”.
A “descoberta”, porém, só veio em 1976, pelas mãos de ninguém menos que Elis Regina. No festejado disco “Falso Brilhante”, Elis incluiu e lapidou com sua interpretação vívida duas composições de Belchior: “Velha Roupa Colorida” (apresentada com um arranjo com contornos de jazz) e “Como nossos pais” (que virou quase um hino).
Veja a interpretação de Elis Regina para “Como Nossos Pais”
Na esteira de “Falso Brilhante”, Belchior lançou, naquele mesmo ano, “Alucinação”, seu segundo LP e considerado seu melhor disco. Neste álbum, Belchior experimentou pela primeira vez o sucesso, com “Apenas um rapaz latino-americano”, que chegou a ganhar um videoclipe pra lá de conceitual no Fantástico. (Em 2014 – já pós-“sumiço” – “Alucinação” foi homenageado com uma releitura, feita por jovens músicos independentes).
Até ali, já estava clara uma temática recorrente no cancioneiro do músico cearense: as angústias e deslumbres de quem se vê forçado a deixar sua terra natal para tentar a vida no eixo Rio-São Paulo. Uma dessas músicas, “Galos, noites e quintais” arrebatou o também cearense Chico Anysio, que a elegeu como canção favorita. O próprio Chico chegou a cantá-la, no programa Senhor Brasil, de Rolando Boldrin - com um embevecido Belchior na plateia.
Para além disso, Belchior se envolveu em “discussões” musicais saborosíssimas. Em “Fotografia 3x4”, retrucou Caetano Veloso, que em “Alegria, Alegria”, havia cantado que “o sol é tão bonito”. “Veloso, o sol não é tão bonito/ Pra quem vem do Norte e vai viver na rua”, contrapôs o cearense. Em outro episódio, foi alvo das ironias de Raul Seixas, em “Eu também vou reclamar”.
Antes de se tornar músico, Belchior cursou medicina e filosofia. Não concluiu nenhum deles, mas Sócrates, Platão e os clássicos lhe deixaram marcas profundas, explicitadas em sua obra, salpicada de referências. Em seu autoexílio, o músico dedicava-se a traduzir a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, para o português e a criar uma versão em espanhol de todo seu cancioneiro. Não houve tempo. Em tempos de “Fora, Temer! Volta, Belchior”, o latino-americano se foi, justamente quando sua obra vinha sendo celebrada e redescoberta. Por clichê que seja, fica a obra. E que obra.
Álbum “Mote e Glosa”
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