Esqueça o Borges cujos olhos fechados pela cegueira reforçavam a imagem de um intelectual mergulhado num mundo metafísico. Esqueça o conferencista renomado que encantava platéias sofisticadas ao falar de mitologia e literatura. Esqueça o homem de sorriso discreto e que parecia muito à vontade ao lado de sua companheira muitas décadas mais jovem. Não por acaso esses Borges que nos acostumamos a ver em fotos das décadas de 1970 e 1980, só aparece nas páginas finais da biografia Borges, uma Vida, do inglês Edwin Williamson.
Ao longo da maioria das 600 páginas, o inglês se empenha em retratar a construção do escritor Borges que, no ponto de vista adotado nesta biografia, é um produto indissociável do ambiente político e cultural argentino e de sua história familiar. Acima de tudo, parece dizer Williamson, a obra de Borges é o reflexo sofisticado e mal disfarçado de suas paixões por mulheres que o abandonaram, fazendo dele um homem solitário e frustrado na maior parte de sua vida.
Esse aspecto da biografia tem sido saudado como a maior contribuição de Williamson ao conhecimento da vida e da obra do maior escritor argentino, que entrou para o grupo de grandes nomes da literatura mundial. Williamson vasculha a vida pessoal de Borges e revela as grandes paixões que quase o enlouqueceram. Aparentemente, ele era o escritor totalmente mergulhado na literatura, o intelectual engajado na vida política e cultural argentina e um homem que gostava de estar cercado por mulheres bonitas e inteligentes, mas não parecia disposto a se envolver seriamente com nenhuma delas. Não era bem assim, diz Williamson.
Borges se apaixonou por mulheres incomuns, que buscavam uma vida intelectual rica e que não se esforçavam para seguir o modelo de conduta esperado das senhoritas na Buenos Aires da época. Foi o caso da ruiva Nora Lange, que ele venerava, mas que o trocou por outro escritor por causa dela, Borges povoou seus escritos durante anos de personagens ruivas e de conexões nórdicas, que lembravam a origem norueguesa da mulher que o desprezara. Depois foi a vez de Estela Canto, a quem chegou a propor casamento. Ela não o amava e não levou o caso muito a sério, como viria a admitir anos depois. O escritor também se envolveu com algumas moças comuns e, nesses casos, foi ele quem se desinteressou delas.
Borges apaixonava-se por mulheres que seriam inaceitáveis para sua mãe. Mas, prevendo a oposição que enfrentaria, não levava nada adiante. Elas eram inaceitáveis para Leonor Acevedo Borges que exercia enorme e sufocante influência sobre o filho ou porque vinham de uma classe social inferior ou porque nãos se enquadravam nos altos padrões de respeitabilidade que ela impunha à família.
Williamson se demora em interpretações literárias e psicológicas dos textos. São interpretações bem fundamentadas e ainda assim se pode perguntar se ele não está indo longe demais. Mas o biógrafo inglês é convincente por ser detalhista e se baseia em um número respeitável de fontes confiáveis, entre as quais o melhor amigo de Borges, Adolfo Bioy Casares, e o psiquiatra que o atendeu em sua primeira tentativa de se submeter à psicanálise.
Com a psicanálise, Borges buscou uma ferramenta mais concreta para vasculhar suas emoções e entender o que o impedia de realizar seus amores Williamson sustenta que ele também fazia essa busca incessantemente através de sua literatura. Borges se sentia inferiorizado e devedor em relação à sua família. Não era uma família qualquer, mas um grupo de "criolos" (os primeiros imigrantes espanhóis que ocuparam a Argentina) que incluía vários heróis da construção da nação argentina. Desde muito jovem, Borges se comportou como um cruzado encarregado de proteger um Graal sagrado no caso dele, a honra familiar, obsessão de sua mãe, e o projeto de criação de uma nação argentina.
A história de Borges contada por Williamson é a história de um século decisivo para a construção do país vizinho, eternamente torturado pela autoimagem que seus cidadãos querem construir para si. O escritor era mais um argentino confundido por suas origens mistas (um tanto criolo, um pouco inglês). No caso dele, a questão era importante também porque orientava o rumo de sua literatura. O escritor argentino deveria se concentrar no universo criolo? Ou se abrir para as influências trazidas pela abertura do país aos mercados internacionais e à chegada de imigrantes de origens diversas? "O próprio Borges tinha dúvida sobre quem era: esteve sempre dividido entre passado e presente, pampa e cidade, mãe e mulheres," escreve Williamson.
Durante a primeira metade do século 20 o debate foi forte na Argentina e, muitas vezes, manipulado politicamente. Na maturidade, Borges resolveria a questão e expressaria sua convicção em um texto que se tornaria muito influente em que ele diz: "Creio que nós argentinos, e os sul-americanos em geral, estamos numa situação análoga; podemos lançar mão de todos os temas europeus, utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, consequências afortunadas."
A favor de sua ambição de mostrar Borges por inteiro, Williamson tem o fato de conhecer profundamente a história argentina. Professor de Literatura Espanhola em Oxford (Inglaterra), ele é autor de The Penguin History of Latin America, obra de referência, em língua inglesa, sobre o continente.
Sem o contexto histórico seria impossível entender até mesmo a angústia de Borges, que o mantinha a uma distância respeitosa demais das mulheres. Como suas musas eram mulheres decididas e modernas, elas acabam se cansando de sua lentidão para dar o próximo passo. A crer no relato de Williamson, o escritor chegou a ter uma espécie de bloqueio, que o impedia de viver uma relação erótica com suas namoradas.
Esses casos de amor complicados estão descritos com todos os detalhes disponíveis mas de forma alguma o resultado é um relato pitoresco ou anedótico dos altos e baixos da vida de um homem solteiro. A profundidade psicológica aplicada por Williamson aproxima o leitor da angústia de Borges, que parece condenado à solidão eterna, que nem mesmo o sucesso literário mitigaria.
Borges demorou, mas acabou se livrando do controle materno. A longevidade de Leonor não facilitou a vida do filho: ela viveu até os 99 anos. O bom filho Borges tomou coragem para romper com a esposa que a mãe arranjou para ele um casamento pensado para garantir que ele, já cego, tivesse uma "cuidadora" depois da morte de Leonora. Rompida essa barreira, teve coragem de se declarar para sua jovem aluna Maria Kodoma, a única que não teve dúvidas sobre o sentimento que os unia. Ela acreditava que o amava e não se constrangeu com a diferença de idade (38 anos).
María era, ela própria, uma argentina atípica. Filha de um japonês que se separou da mãe dela, foi criada entre o catolicismo da família materna e o xintoísmo do pai. Ele a tratava como trataria um filho homem e dizia que Maria poderia ser o que quisesse na vida, enquanto a família da mãe a mantinha trancada em casa. Maria foi uma moça solitária e interessada em desafios intelectuais. Borges era um mestre, mas também um homem interessante, aos olhos dela. Sem os dramas que cercaram suas relações anteriores, o septuagenário Borges encontrou o amor. Nas fotos reunidas por Williamson, as imagens do casal registram o que parece ter sido uma guinada na vida dele. Ao longo da vida, ele é sempre o homem sério ao lado de amigos e parentes. Na velhice, tornou-se, nas fotos, o homem sorridente ao lado de uma mulher que também parece feliz.
Serviço
Borges, uma Vida. Edwin Williamson. Companhia das Letras. 637 páginas. R$ 68.
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