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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Na bem conhecida dedicatória de Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour, Uma Apresentação (L&PM), lê-se: "Se ainda restar no mundo um leitor diletante – ou alguém que leia apenas por ler – peço-lhe , com indizível afeto e gratidão, para dividir a dedicatória deste livro em quatro partes, com minha esposa e meus filhos".

O recluso autor, que morreu um ano atrás, aos 91, parece ter encontrado esse leitor ideal em seu mais recente biógrafo, Kenneth Slawenski, fundador do site DeadCaulfields e agora autor de um novo livro sobre a vida de Salinger, obra séria, simpática e perspicaz.

J. D. Salinger – A Life, que usa livremente fontes como as cartas de Salinger e um livro de memórias de sua filha, Margaret, peca pela tendência a assumir uma correspondência direta entre a vida do autor e sua obra. E repete boa parte das informações de duas biografias anteriores, de autoria de Ian Hamilton e Paul Alexander. Ainda assim, o faz sem o tipo de condescendência e, por vezes, especulação voyeurista que mancha esses dois outros livros, além de realizar um trabalho de retrospectiva ao traçar a evolução da obra e do pensamento de Salinger.

O Salinger que emerge da nova biografia é parente próximo, psicologicamente falando, de sua mais famosa criação, o adolescente Holden Caulfield, e das crianças-prodígio da família Glass, protagonistas de seus livros posteriores. Trata-se do eterno outsider e peregrino espiritual que se sente preso a um mundo vulgar e materialista, cheio de hipócritas e chatos. Adorado por uma mãe que "acreditava completamente em seu talento", escreve Slawenski, o jovem Salinger "passou a esperar a mesma reação dos outros, e tinha pouca paciência ou consideração com aqueles que pudessem duvidar dele ou não partilhar de seu ponto de vista". Mais tarde, esse sentir-se especial sedimentou-se em intolerância com outras pessoas e numa incapacidade de deixar para trás a visão de mundo adolescente de Holden, do tipo tudo ou nada, o que acabaria por marcar a ficção posterior de Salinger, tornando-a cada vez mais solipsista e ferina.

As experiências de Salinger durante a Segunda Guerra Mundial agravaram ainda mais seu senso de alienação. Slawenski escreve que a guerra deixou profundas cicatrizes psicológicas no autor, marcando "em todos os sentidos" sua personalidade e reverberando em seus escritos. E o livro se dá ao trabalho angustiante de reconstruir os horrores que o jovem soldado provavelmente assistiu no Dia D e depois, como membro de um regimento que, ao que consta, teve grandes perdas na Batalha de Hürtgen Forest e, mais tarde, ao participar da libertação das vítimas do campo de concentração de Dachau.

De acordo com a nova biografia, Salinger foi hospitalizado em 1945, diagnosticado com o que hoje se chamaria transtorno de estresse pós-traumático. Uma carta que escreveu antes disso a um amigo dizia que, no dia em que o exército alemão se rendeu, o autor, sentado em sua cama, olhava, nas palavras de Slawenski, "para uma pistola calibre 45 que apertava com força nas mãos", perguntando-se como seria "disparar a arma contra a palma da mão esquerda" – cena que, de forma sinistra, antecipa o final chocante do conto "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana" [presente, em português, na coletânea Nove Estórias, publicada pela Editora do Autor].

O isolamento de Salinger foi gradual. Primeiro, afirma Slawenski, o autor se mudou de Nova York para Connecticut e, em seguida, em 1953, comprou uma propriedade numa encosta em Cornish, um vilarejo em New Hampshire. No momento em que se casou com a jovem Claire Douglas, alguns anos mais tarde, levava uma vida austera, que girava em torno de escrita, meditação e ioga.

Após o nascimento de sua filha, Margaret, em 1955, relata Slawenski, Salinger passava mais e mais tempo escrevendo no pequeno bunker verde que construíra para si nas proximidades dos rochosos cinzentos da encosta; depois de comprar uma fazenda vizinha, em 1966, "construiu uma casa só para ele do outro lado da rua", de frente para o chalé da família. Claire Salinger pediu o divórcio em setembro daquele ano.

Na altura da década de 80, continua Slawenski, "a aversão crônica de Salinger a correspondências não solicitadas passou do pavor ao desprezo e ao medo"; com o tempo, "ele passou a ignorar não só as cartas de desconhecidos, mas também as da família e de amigos".

O que causou a reclusão de Salinger? Sem dúvida, as experiências na guerra, assim como suas crenças religiosas, contribuíram para uma crescente sensação de estranhamento. Ao final de 1946, escreve Slawenski, "Salinger tinha começado a estudar tanto o zen-budismo quanto o catolicismo místico" e, na década de 1950, abraçou os ensinamentos do místico indiano Sri Ramakrishna. Slawenski argumenta que, "a partir do momento que terminou de escrever O Apanhador no Campo de Centeio, Salinger passou a se guiar pela filosofia de que seu trabalho era o equivalente à meditação espiritual", e de que a fama, os fãs e a publicidade da obra alimentavam o ego, em vez do espírito, além de "quebrar seu estado meditativo".

Quanto à narrativa de Slawenski sobre a vida ímpar de Salinger, restam buracos e perguntas sem resposta – talvez não surpreendentemente, dada a extrema reticência do biografado e sua mania de privacidade, o que deixou o biógrafo à mercê de fontes secundárias.

Tradução de Christian Schwartz.

Serviço: J. D. Salinger – A Life, de Kenneth Slawenski. Random House, 450 págs., US$ 27 (importado).

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