A Vida e a Arte
de Sylvia Plath
Carl Rollynson. Tradução de Regina Lyra. Bertrand Brasil, 392 pp., R$ 55.
Nove de julho de 1962. Um telefonema da amante de seu marido, Assia Wevill, que ela atende por acaso, explode o casamento da poeta Sylvia Plath (1932-1966) com o também poeta Ted Hughes (1930-1998). “Ela reconheceu a voz da mulher que queria falar com Ted, ainda que Assia tenha falado baixo, fingindo, segundo achou, ser um homem”, descreve seu biógrafo Carl Rollyson. Encontro seu relato em Ísis Americana — A Vida e a Arte de Sylvia Plath. O telefonema agourento, expresso na voz abafada de Assia, configura um corte dramático na vida da poeta americana. Um baque do qual ela não se recupera mais.
Quatro anos depois, aos 30 anos, Sylvia comete suicídio, colocando a cabeça no forno da cozinha de sua casa. Antes, teve o cuidado de vedar o quarto dos dois filhos, que dormiam no andar de cima, usando toalhas úmidas. Também tratou de escancarar as janelas, para protegê-los de si mesma e de seu ato final. A voz de Assia resta, assim, como a assinatura (ou cicatriz, o que dá no mesmo) de uma ruptura. “Oh, Deus, como vou poder um dia limpar a mesa do telefone”, ela desabafou pouco depois de desligar. “Court Green, o lar de Devon que ela criara como um porto seguro para sua família e para o ofício do casal, parecia agora poluído”, descreve Rollyson, ainda hoje perplexo.
Uma voz, uma simples voz, nem meia dúzia de palavras, e um mundo desmorona. Os “s” sibilantes do nome de Assia nunca mais sairiam de seus ouvidos. Lembra seu biógrafo que Sylvia Plath sempre foi a poeta do exagero, “tanto em termos de técnica como de temperatura”. Talvez na maioria dos poetas esse seja um grave defeito. “Mas a grande conquista da escritora é precisamente sua recusa em ser moderada, em usar o freio que os britânicos consideravam uma boa forma”. As palavras lhe chegaram, sempre, com violência. Ao escrever, Sylvia preferia, às meias palavras, a força do excessivo. “Palavras carregadas eram sempre a tônica de Sylvia Plath — independentemente de expressarem seus altos ou baixos”. Agora as palavras, miseráveis palavras, se voltavam contra ela e tornavam sua vida impossível.
Em um de seus mais célebres poemas, “Palavras”, Sylvia escreve: “Machados,/ depois do seu golpe a madeira ressoa,/ e os ecos./ Ecos que partem/ do centro, semelhantes a cavalos”. As palavras como imagens imateriais para um machado. Para o corte mais sangrento, talvez definitivo. Para a morte. Embora tenha preferido morrer asfixiada pelo gás de cozinha, há algo de cortante em seu gesto final. Não foi o gás que a matou, mas sim as palavras odientas.
Lembra seu biógrafo que “a propriedade mágica que atribuía às palavras fica evidente na fogueira que ela se dispôs a fazer com os papéis de Ted”. Se a imolação de seus manuscritos não chegou a assombrar Ted, Carl Rollyson medita ainda, é porque ele conhecia muito bem o poder que as palavras tinham para Sylvia. “Como sabia o marido, ela só podia tornar a viver se destruísse aquelas palavras, que agora pareciam uma mentira”. Palavras vivas, vibrantes, sibilantes — palavras ardentes como brasas. Brasas que se descolam do papel e incendeiam também a alma de quem escreve.
A partir do telefonema de Assia, recorda Rollyson, o casal ainda simula uma vida normal — mas tudo está definitivamente estragado. A partir dali, as palavras de Sylvia se tornam, antes de tudo, melodramáticas, algo que Ted não pode suportar. A uma amiga, ela desabafa: “Ted diz que todo tipo de gentilezas e doçuras que eu amava e que me levaram a casar com ele não passaram de mero sentimentalismo”. Isto é: de exageros.
O casal ainda faz uma viagem à Irlanda, na tentativa de uma reconciliação, mas a aventura termina abruptamente porque Ted, de repente, simplesmente desaparece. A frieza do marido a choca ainda mais. Começa a fazer uma psicoterapia, mas a doutora Beuscher não sabe dizer se Sylvia a consulta como uma psiquiatra, ou como uma feiticeira. A terapeuta teme, desde o início, que Sylvia passe a ancorar toda a sua existência no drama que vive com o marido. E que, assim, se esqueça de si. A senhora Beuscher tenta, todo o tempo, lançá-la de volta a si mesma. “Chore sozinha”, a psiquiatra não se cansa de aconselhar. Envolve-se de tal forma com sua paciente que se recusa, inclusive, a receber qualquer pagamento. Admite: “Se eu não curar mais ninguém em toda a minha carreira, você já basta. Eu te amo”.
Nem o apoio incondicional da doutora Beuscher leva Sylvia Plath a um ponto de equilíbrio. Melhora um pouco nas horas em que se seda com medicamentos. E nada mais. “Mortos e corpos povoam seus poemas”, escreve Rollyson. Em honra à memória do pai, ela passa a criar abelhas. Talvez se sinta um pouco mais protegida. As palavras, contudo, continuam a atiçá-la e, ao mesmo tempo, a pressioná-la. Palavras infatigáveis, que desfilam em seus dedos, “enquanto/ do mais fundo do lado as imóveis estrelas/ regem a vida”. Em contraste com a indiferença do real, as palavras a incendeiam. Há algo que se passa muito além das palavras e que só o silêncio e a contenção — contrários do exagero — conseguem expressar.
Carl Rollyson não resiste a compará-la a Ísis — a deusa egípcia, protetora da natureza e da magia. “Ela lembra a Ísis americana. Queria ser um exemplo de mãe e esposa — mas com seu poder e sua magia intactos”. As palavras, para Sylvia Plath, foram um instrumento para promover a ligação entre essas duas instâncias. Um instrumento em brasa, que acende, mas também incendeia, quem o manipula. Na madrugada em que cometeu suicídio, a poeta sabia que sua enfermeira chegaria pela manhã bem cedo. Provavelmente, esperava ser salva — esperança que, enfim, não se realizou. Sylvia já foi encontrada morta. Com sua morte, o delicado elo entre palavra e ato, que sempre a alimentou, enfim se quebra. Sobra um corpo vazio, sem palavras, muito diferente do corpo abrasador que produziu alguns dos mais belos poemas americanos.