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Na terceira adaptação para o cinema de "Bonitinha mas Ordinária", o texto e situações chegam à tela praticamente intactos, bastante fiéis aos originais, embora a trama se situe no tempo presente. Ainda assim, o filme não parece com nada daquilo que chamaríamos de uma obra rodrigueana. Isso tem muito a ver com uma espécie de higienização pela qual optou o diretor Moacyr Góes ("O Homem que Desafiou o Diabo"), tornando tudo tão asséptico e arrumadinho que nem as luzes do cabelo de Maria Cecília (Letícia Colin) saem do lugar enquanto é abusada por diversos homens. Nem uma gota de suor escorrendo, apesar de um visível rigor técnico na produção. Não se procura um registro rodrigueano, visceral, como se vê nas duas versões cinematográficas anteriores, de 1963 e 1981, com Lia Rossi e Lucélia Santos, respectivamente, no papel-título. A personagem aqui cabe à estreante Letícia Colin, que, em alguns momentos, parece saída direto de um capítulo de ‘Malhação'. Por outro lado, os dois protagonistas masculinos, vividos por João Miguel e Leon Góes, entram exatamente naquele desespero à flor da pele típico dos personagens de Nelson Rodrigues. João é Edgar, ex-office boy que subiu de cargo numa construtora, mas ainda "não é ninguém", e recebe uma proposta de Peixoto (Leon): casar-se com uma moça rica que "sofreu um acidente, como um acidente de carro", nas palavras do pai dela, dr. Wernek (Gracindo Júnior), o dono da empresa. A verdade é que Maria Cecília foi estuprada quando participava de um baile funk numa favela carioca. A peça -cujo nome completo é "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária"- foi originalmente montada em 1952. No contexto da época, fazia mais sentido um pai desesperado por casar a filha que não é mais virgem. Na atualização contemporânea da história, este detalhe soa um tanto forçada. Mas o que realmente faz falta quando se passa a trama para os dias atuais é o momento político. No começo dos anos de 1960, o mundo vivia o auge da Guerra Fria, a Crise dos Mísseis de Cuba. Por isso, durante uma festa regada a bebida e sexo, o dr. Werneck diz: "Eu posso tudo, o mundo vai acabar mesmo." Mas a frase não faz, hoje, o mesmo sentido. É essa atitude de descaso e egoísmo da burguesia que Nelson escancara em sua obra, mostrando a podridão -o termo não é exagero- da classe dominante. É interessante ver como um país materializa em sua produção artística a tensão geopolítica de um tempo. E agora, qual a tensão? Não se encontra um equivalente, ao menos, no filme. Moacyr Góes é diretor de teatro que migrou para o cinema - transitando entre os mais diversos gêneros, desde o infantil, "Xuxinha e Guto contra os Monstros do Espaço", passando por filmes religiosos do padre Marcelo, até dramas, como "Dom", uma equivocada atualização de "Dom Casmurro", de Machado de Assis.

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