Cem anos atrás, música erudita era uma coisa, música brasileira era outra e música norte-americana uma terceira bem diferente. Era impossível confundir uma com a outra. Mesmo vários anos depois de o rádio chegar ao Brasil, a distinção costumava ser bem nítida. Orquestras de um lado, regionais de outro, bandas de jazz em outro canto. Mas, alguns compositores começavam a brincar com misturas inusitadas. Uma miscelânea que produziria um século de música miscigenada e altamente inovadora.
O garoto Radamés, nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 1906, começava a se transformar em concertista nos anos 20. Tinha tudo para ser um músico erudito à moda clássica. Até o nome era inspirado em uma personagem da ópera Aida, do italiano Giuseppe Verdi. Tocava piano, compunha e sonhava em ser um instrumentista de primeiro time. A falta de dinheiro e a obrigação de se virar para conseguir o sustento acabaram levando o rapaz a enfrentar outros tipos de desafio. Fez arranjos, tocou em sessões de cinema mudo e acabou indo parar na rádio, conduzindo orquestras de música popular.
E foi essa mistura que se tornou a sua marca característica. Agora, quando se comemoram os cem anos de nascimento de Radamés Gnattali, sabe-se que uma de suas principais contribuições para a música no Brasil foi a miscelânea que ele conseguiu fazer com pelo menos três gêneros diferentes de sonoridade. Jogava elementos do jazz norte-americano em uma poção que tinha como base sua formação clássica e a influência da música popular brasileira. "Ele era muito inovador e bastante nacionalista. São marcas que fizeram dele um dos compositores mais importantes da história de nossa música", afirma o compositor Jaime Zenamon, que coloca Gnattali entre os cinco maiores nomes da composição erudita no país.
Rádio
A principal virada na carreira de Gnattali ocorreu no começo dos anos 30. Sem dinheiro para pagar as contas, aceitou um trabalho na Rádio Clube do Brasil. Mais tarde, passou para a Rádio Nacional. E lá fez história. Acompanhava as grandes estrelas da época, regendo também uma pequena orquestra. Escrevia os arranjos para o seu grupo. Em média, eram nove arranjos novos por semana. Entre eles, alguns históricos, como o que escreveu para "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso. O qual, inclusive, foi criticado à época como norte-americano em excesso.
As harmonias usadas por Gnatalli buscavam influências não só no jazz, mas era isso principalmente que os críticos encontravam. "O acorde americano, como ficou conhecido o acorde de nona, agradou muito o público e, se também era utilizado no jazz, era porque os compositores de jazz ouviam Ravel e Debussy", disse em depoimento publicado em 1979, em O Estado de São Paulo. "Aqui ninguém nunca tinha ouvido o tal acorde em outro lugar a não ser em música americana, e vieram as críticas", contava ele.
O primeiro cantor brasileiro a gravar um disco acompanhado por uma orquestra sinfônica foi Orlando Silva. "Vendeu toneladas de discos, apesar das reclamações contra meus arranjos", lembraria Gnattali mais tarde. A carreira como arranjador acabou lhe rendendo fama. Trabalharia mais tarde para a Rede Globo, então uma jovem emissora. Também escreveu trilhas sonoras fez mais de 40, entre elas a de clássicos como Ganga Bruta e Rio 40 Graus.
No fundo, porém, Gnattali continuava nutrindo sua paixão pela música erudita, que não lhe dava o mesmo dinheiro. Compunha suas obras normalmente em homenagem a algum amigo, algum instrumentista. Algumas de suas peças entraram para o repertório das orquestras. É o caso da Suíte Retratos, para ficar com o exemplo mais conhecido. Nas composições eruditas, também fazia a mescla, agora invertida. "Respeito muito a maneira como ele conseguia colocar formas extremamente populares, como o choro, no meio de uma forma clássica", afirma Janete Andrade, diretora-artística da Oficina de Música de Curitiba.
Apesar de ser conhecido como um homem de temperamento fechado, também se transformou com o tempo numa espécie de professor de novas gerações de músicos. Entre os que podem ser listados como seus discípulos estão desde Tom Jobim até o violonista Raphael Rabello.