No encarte, os traços de grafite da dupla paulistana "OsGemeos" retratam o casal de noivos do interior do Nordeste, ela descalça. No CD, o universo rural de maracatus e cirandas se casa com metais de acento funky e sotaque do leste europeu, as guitarras de Lúcio Maia (Nação Zumbi) e Fernando Catatau (Cidadão Instigado), a voz urbana de Céu, o piano Rhodes de Beto Villares. Assim é "Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar" (Ambulante Discos), segundo disco do rabequeiro, cantor e compositor Siba ao lado de sua Fuloresta (formada por músicos de Nazaré da Mata, cidade da Zona da Mata pernambucana). A proposta, portanto, é o encontro entre o tradicional e o contemporâneo, certo? Errado. Não é assim que a banda de Siba toca.
- Vejo tradição como um gosto compartilhado que cria uma linhagem ao longo do tempo. O maracatu tem sua tradição, o rock tem sua tradição. No disco, há diferentes tradições se comunicando. Não gosto do termo "contemporâneo" como oposição a "tradição". Ele é usado geralmente para reforçar preconceitos contra coisas consideradas arcaicas ou primárias - analisa Siba, ex-Mestre Ambrósio, banda egressa do mangue beat, movimento que no início dos anos 90 iniciou a aproximação do maracatu com a cultura pop.
Apoiado na Fuloresta - formada por Biu Roque, Mané Roque, Cosmo Antônio (percussão e voz), Zeca (percussão), Roberto Manoel (trompete), Galego (trombone), João Minuto (sax tenor), Bolinha (tuba) -, Siba assume um compromisso com a contemporaneidade, mas que não passa pelas guitarras ou pelos grafites que ilustram seu encarte. Ou melhor, passa também por ali, da mesma forma que atravessa seus maracatus, cocos, frevos e cirandas e seus versos que remontam aos cantadores de rua, com imagens da natureza e reflexões atemporais sobre a morte:
- Minha música e minhas letras estão profundamente ligadas ao meu tempo. Mesmo porque não tenho a menor preocupação de preservação ou manutenção de nada. Faço maracatu porque ele está vivo, e as pessoas da minha terra gostam dele porque gostam, não para preservá-lo - afirma. - Se ele acabar um dia, é porque não conseguiu se adaptar. Foi o que aconteceu com a festa do cavalo-marinho, uma tradição que está morrendo porque o universo no qual surgiu, dos engenhos de cana, não existe mais. O maracatu sobreviveu porque foi para a cidade, teve contato com a TV e o rádio, seus poetas tiveram alfabetização e ampliaram seus temas. Se a tradição dá o passo à frente, acompanhando o mundo, ela segue viva. Se não, não adianta gravar, fazer livro, registrar, defender...
Abertas ao futuro, as tradições urbanas e rurais de Siba, portanto, dispensam museólogos. Não há, porém, modernização a fórceps - as intervenções de sonoridades estranhas ao universo musical da Zona da Mata não entram para dar um mero atestado de novidade ao disco. No CD - que será lançado em DVD no início de 2008, a partir de registro ao vivo - o novo se insinua de forma muito mais sutil. E mesmo quando a aparência é de uma música enraizada num chão pernambucano ancestral, a originalidade contemporânea se afirma - quase sempre nos arranjos de metais, como se ouve, entre outras, no humor "acid jazz" da canção "Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar".
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