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A musicalidade de trechos do livro de Paulo Leminski, ditas em off pelo ator João Miguel, acompanham seu personagem Renato em terras brasileiras, percorrendo várias regiões do país | Divulgação
A musicalidade de trechos do livro de Paulo Leminski, ditas em off pelo ator João Miguel, acompanham seu personagem Renato em terras brasileiras, percorrendo várias regiões do país| Foto: Divulgação

Iconoclássicos

Ex Isto integra o projeto IconoClássicos, do Itaú Cultural, que convidou cinco diretores de cinema para se debruçar sobre o universo criativo de cinco artistas brasileiros contemporâneos. À exceção de Itamar Assumpção, todos os artistas homenageados foram tema de exposições do projeto Ocupação, na sede do instituto, em São Paulo. Saiba quem são.

Literatura

- O escritor curitibano Paulo Leminski (1944-1989), por Cao Guimarães

Teatro

- O diretor, ator e dramaturgo paulista Zé Celso Martinez Corrêa, fundador do Teatro Oficina, por Tadeu Jungle.

Artes visuais

- O artista paulistano radicado no Rio de Janeiro Nelson Leirner, por Carla Gallo.

Cinema

- O catarinense Rogério Sganzerla (1946-2004), diretor do consagrado O Bandido da Luz Vermelha (1968), por Joel Pizzini.

Música

- O compositor, cantor e instrumentista paulista Itamar Assumpção (1949-2003), por Rogério Velloso.

A certinha Curitiba produziu um dos mais malucos escritores brasileiros, Paulo Leminski. Além de poemas, ele é autor de um romance pouco lido, mas sobre o qual muito se fala: Catatau. Lançado em 1975, a obra traz divagações sobre o Brasil, que partem de uma hipótese insólita – e se o filósofo, matemático e físico René Descartes tivesse vindo ao país nas caravelas do colonizador holandês Maurício de Nassau?

O livro inspirou um filme tão maluco quanto: Ex Isto, do cineasta e artista plástico mineiro Cao Guimarães, exibido no encerramento do 38.º Festival de Cinema de Gramado, no último dia 13. Como Leminski, Cao provocou no público que viu o longa, em primeira mão, sentimentos que vão da exaltação à indignação. O que demonstra que o diretor acertou em cheio na ousadia e experimentação.

Autor de produções elogiadas como O Andarilho (2004) e A Alma do Osso (2004), Cao leu as poesias de Leminski quando o curitibano ainda era vivo, na década de 80. Depois disso, nunca mais. Mas, a convite do Itaú Cultural, que o convidou e a outros quatro cineastas para realizar filmes sobre artistas contemporâneos de diversas áreas (leia quadro), acabou descobrindo o Catatau. "É a obra de Leminski que mais me impactou. O livro é uma espécie de Finnegans Wake brasileiro, uma investigação de linguagem profunda. Há provérbios populares, neologismos, línguas latinas como o hebraico e o latim", diz.

Ele leu não mais do que três ou quatro páginas por dia, em voz alta, para compreender uma obra que define como difícil, hermética e, por isso mesmo, pouco compreendida. Assim, sentindo-se um bebê em estado pré-oral, Cao percebeu que seu filme deveria ser, sobretudo, sensorial. A musicalidade de trechos do livro, ditas em off pelo ator João Miguel (Estômago) acompanham seu personagem Renato, o René, em terras brasileiras, nas andanças por um país que faz cair por terra todos os seus pensamentos cartesianos.

Gravado em apenas 15 dias, sem roteiro prévio, em uma viagem que, de tão relaxada, Cao compara a fazer turismo, Ex Isto é puro deleite visual. "Sempre tive pânico de adaptação literária, de imagens como meros ornamento de poemas", declara. Daí, a opção por restringir a adaptação à parte em que o filósofo moderno dissolve seu ideário no calor dos trópicos.

Uma das primeiras sequências, em que o personagem de João Miguel (de talento espantoso) aparece em um barco, com roupas do século 17, nos faz pensar que Ex Isto será um filme de época. Ledo engano. Assim que começa a remar, Renato adentra Recife pelo seus canais, como um veneziano, e se depara, abobalhado, com uma barulhenta e moderna metrópole. "Essa viagem no tempo pode ser um mero sonho do filósofo, uma visão", diz Cao.

O filme absolutamente antinaturalista, alegórico, incomoda os, digamos, mais cartesianos. Afinal, se Leminski queria exibir a razão em pânico diante da natureza, da sensualidade e do caos brasileiros, nada mais apropriado do que ver o personagem, pensativo, sentado no galho de uma árvore, sendo isolado repentinamente pelo fenômeno da pororoca. Metáfora perfeita para o encontro da poesia concreta e do tropicalismo, que Leminski chamava de "pororoca cultural". (Este é, aliás, um filme tropicalista, feito por uma equipe mineira e um ator baiano, guiados por um paranaense, gravando no Amapá e em Pernambuco.)

O personagem de João Miguel – que é o próprio ator, impregnado das leituras do Catatau e do Discurso do Método, de Descartes – perambula pelas ruas de Recife sem manter relação direta com ninguém. Em um momento impagável do filme, imita a coreografia de uma dança popular na rua. Em outro, mais performático, interage com manequins de mulheres nuas em uma loja, em cena que revela a serialidade fabril dos bonecos enfileirados em meio a um país "doidão", no dizer de Cao. Encontra identificação com sua visão metódica, geométrica, na arquitetura modernista de Brasília, fotografada de modo belíssimo.

"Quis lançar o público a um estado de torpor, a outro tempo narrativo, tirá-lo alguns centímetros do chão", diz Cao. É o fracasso do projeto batavo, branco, no trópico. Ex Isto e os demais filmes da série Iconoclássicos logo serão vistos nos cinemas do grupo Unibanco Arteplex, com entrada franca, subsidiada pelo Itaú Cultural.

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