Na gravação ouve-se o assobio de um homem imitando um pássaro. A resposta vem pouco depois, no canto de um pássaro de verdade. O homem que inicia, e que grava a conversa, é Antonio Brasileiro, ou Tom Jobim para muitos. O áudio, que revela a relação do músico com a natureza na intimidade, faz parte de uma coleção com outros nove mil documentos, na sua vasta maioria inéditos, que serão abertos pela primeira vez para consulta pública. O material integra o acervo digital do Centro Tom Jobim, que será inaugurado no Jardim Botânico nesta segunda-feira, e ajuda a traçar a personalidade do compositor. A iniciativa acontece um ano antes da data em que Jobim completaria 80 anos.
Foram necessários quatro anos e R$ 1,1 milhão de investimento para tirar do papel o Centro Tom Jobim/Cultura e Meio Ambiente, que tem apoio da Faperj, Petrobrás e do Jardim Botânico e comando do músico Paulo Jobim, do ambientalista João Augusto Fortes e da estilista Biza Vianna. Para compor o acervo digital, que poderá ser consultado em quatro computadores, mais de 25 mil documentos guardados por Tom Jobim foram limpos, restaurados e escaneados. Os nove mil escolhidos para serem expostos inicialmente são os mais significativos da safra.
No total, são 27 álbuns de carreira tidos como os mais importantes, aproximadamente cem áudios caseiros que mostram o músico compondo ou conversando com amigos e pássaros, três mil fotos, 800 manuscritos, mais de 700 partituras e arranjos originais, 76 vídeos com gravações e entrevistas dadas por Tom, além de centenas de documentos como desenhos, rascunhos e anotações que incluem até mesmo listas de compras de mercado. Entre as jóias, uma carta escrita por Jobim explica a sua relação com a música. "Desde de que me lembro de mim, gosto de música. Minhas primeiras lembranças me levam às cantigas de ninar que minha mãe cantava. Depois, à calçada e às cantigas de roda (...) Lembro-me dos meus tios tocando violão. Vinham os chôros, as valsas, os espanhóis, Bach" é o que relata.
O acervo também revela o processo de criação e a preocupação do maestro em organizar as partituras. Estão lá arranjos feitos com Johnny Alf e Caymmi, sinfonias, notas de músicas como Águas de Março, Desafinado, Canção do Amor. E também estão lá partituras de músicas jamais gravadas, que agora chegam ao conhecimento público. Um choro, composto por ele por volta de 1950, é uma destas obras. A criação é uma espécie de esboço de Desafinado. Os primeiros acordes do clássico, gravado em 1958 num 78 rotações por João Gilberto, são os mesmos primeiros acordes da composição anterior.
- Meu pai tinha noção que tinha de eternizar a sua obra. Ele teve o cuidado de deixar as músicas escritas para que permanecessem - conta o primogênito Paulo Jobim, que também é presidente do conselho do espaço.
Nas composições e arranjos feitos à mão por Tom, aparece uma forma muito particular de escrever a música: uma partitura reduzida para o piano com setas indicando em que parte deveria entrar a orquestra, a voz, outros instrumentos. E, em alguns casos, no pé da página vinha a letra colada com durex.
O acesso e a divulgação das partituras merece destaque. O maestro e diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, Roberto Minczuk, que também regeu os concertos do projeto Jobim Sinfônico, classifica a iniciativa como exemplar e inédita.
- Isso é fantástico. Jobim é um dos maiores patrimônios culturais que o Brasil tem. É importante que o cidadão tenha acesso à sua obra, que a criança possa fazer uma pesquisa. E que sirva de exemplo em um Brasil onde não temos acesso a muitas sinfonias de Villa Lobos, e onde famílias de compositores dificultam a divulgação de obras importantes exigindo cifras fabulosas de direitos autorais - exalta.
Já nos áudios, gravados na intimidade da sua casa no bairro do Jardim Botânico por um cassete que ficava em cima do piano da sala (chamado por ele de estúdio), está Tom testando notas, escalas, sonoridades. Vezes sozinho, vezes em companhia de Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo. Há até um vídeo caseiro de um ensaio das famílias Jobim e Caymmi.
- O cassete ficava em cima do piano e meu pai ligava o aparelho quando tocando ou compondo. E esquecia o 'troço' ligado, captando outras coisas - lembra o primogênito.
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