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Precursores

Charge nem sempre morre com o tempo

Ao retratar seu tempo histórico, a ilustração de humor jornalística permanece como fonte inigualável para pesquisas futuras

 | Tiago Recchia; Alberto Benett de Macedo, Ademir Paixão e Francisco Camargo, o Pancho
(Foto: Tiago Recchia; Alberto Benett de Macedo, Ademir Paixão e Francisco Camargo, o Pancho)

Gênero que já foi visto no meio artístico como "menor", a caricatura e seu uso em charges jornalísticas ganham cada vez mais espaço, seja pela excelência ou pela polêmica provocada.

Um flerte multimidiático já levou essas criações à tela da televisão com os irmãos Caruso (Chico faz animações satíricas para o Jornal da Globo e Paulo ilustra as entrevistas do Roda Viva, da TV Cultura).

A Gazeta do Povo tem seu próprio "time dos sonhos", conforme atestam neste G Ideias charges de Paixão, Benett, Pancho e Tiago Recchia sobre o ofício em que se destacam e sobre o qual escreveram depoimentos a pedido do Caderno G.

São artistas que inseriram seus estilos de traço e humor numa tradição nacional que, de acordo com o historiador carioca Luciano Magno, não deve nada ao que é feito em outros países. Na caricatura, segundo ele, o Brasil também pode se orgulhar de estar no "time dos sonhos" internacional.

O pesquisador lançou no fim do ano passado o primeiro volume de sete publicações que catalogam de forma impressionante a história da caricatura brasileira.

A análise desses desenhos precursores, parte significativa das 100 mil charges publicadas nos nascentes periódicos brasileiros do século 19, revela que, muitas vezes, o humor destilado pela pena do ilustrador-cronista sobrevive à situação criticada naquele momento específico.

Nos trabalhos que vão de 1822 até o final do século 19, estão a crítica à violência contra escravos, Dom Pedro II, o Brasil caracterizado como um velho índio, a própria imprensa ávida por causos e retratos de artistas como Aluízio Azevedo (de O Cortiço), que, antes de se tornar o principal nome do nosso naturalismo literário, vivia de caricaturas em que aplicava veia mordaz.

O historiador mineiro José Murilo de Carvalho já havia prenunciado na década de 1980 a riqueza contida nas ilustrações jornalísticas do passado. Destacou, por exemplo, a caracterização da república então nascente como uma "cocotte", dama frágil e de má reputação.

"Os defensores da monarquia, ou melhor, o Império, ‘masculino’, buscaram fazer uma fragilização da república, dizendo ‘lá vem o regime cocotte", conta o professor de Política da Universidade Positivo Carlos Luiz Strapazzon.

Um exemplo recente citado por Strapazzon de inserção do cartunista na política nacional é Angeli (atualmente na Folha de S.Paulo), que bateu forte contra a ditadura e até hoje cobra em desenhos a revisão dos desmandos daquele período nebuloso.

"Imaginava-se que uma caricatura estava fadada a morrer, por sua atualidade, mas hoje se vê que ela revela muito da sociedade. É um material importante e cada vez mais recuperado", conta a historiadora da arte Rosângela de Jesus Silva, que pesquisa na Universidade de Campinas nomes como o do italiano Angelo Agostini, que, chegado ao Brasil por volta de 1850, influenciou muitos artistas locais e chegou a criar a primeira história em quadrinhos nacional, contando as aventuras do caipira Nho Quim.

Crítica

"Não existe charge a favor", diz-se nas redações. A arte do humor ilustrado está intimamente ligada ao jornalismo opinativo, como lembra o professor de jornalismo da Universidade Federal do Paraná Mário Messagi Júnior. "O riso e a ironia sempre são pontos de vista críticos do ilustrador. Não existe possibilidade de que não sejam vinculados à opinião, fundamentada no material levantado pela redação. A charge sempre vai passar uma visão crítica sobre determinado aspecto da sociedade."

O fato de que há coisas que só podem ser ditas sem palavras está claro quando o leitor busca primeiro a charge quando abre o jornal. E, por mais que um texto possa ser contido por critérios do politicamente correto, isso não se aplica às charges. Domesticado, o humor morre.

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Descobri muito cedo que meu destino estava traçado – ou melhor, o traço estava no meu destino, enquanto fazia meus brinquedos com argila do córrego. Isso quando não estava pulando na água do sítio onde morava com minha família de agricultores no município de Japira, no norte do Paraná. Tinha sete anos quando entrei na escola do bairro e trocava meus desenhos por merendas dos outros alunos.

Aos nove... ou dez, descobri que, tendo uma família bastante religiosa, eu poderia ganhar dinheiro ou objetos trocando ou vendendo desenhos de santos. Foi quando, aos 14 anos, fui contratado para pintar santos na igreja do bairro vizinho.

Aqui em Curitiba não foi diferente. Sempre tentando trabalhar com desenhos – e tudo isso sem quase um puto no bolso. Tentando trabalhar com alguma coisa que envolvesse o desenho era só o que eu sabia fazer. Para aprimorar minha pintura e desenho, tive bons professores.

Me achava um artista plástico com alguns quadros debaixo do braço. Fiz algumas exposições também, achava iria ficar famoso, ganhar muito dinheiro vendendo meus quadros... Não vingou. Eu não tirava nem para comprar tintas para a próxima tela.

Foi aí que deixei a pintura de lado e passei a trabalhar com ilustrações para agências de publicidade. Desenhava de tudo: desenho mecânico, ilustrações de livros, apostilas, fazia minhas caricaturas na feirinha hippie da Praça Garibaldi... naquele tempo ela era realmente hippie.

Como achava também que fazia bem caricaturas, pensei em publicá-las em algum jornal. Me achando um chargista, não sabia que existe uma distância muito grande entre a caricatura e a charge. Também não sabia que, para ser um bom chargista, precisa primeiro ser um bom jornalista. Saber qual a notícia relevante que vai estar nas manchetes do dia seguinte, passando uma informação precisa, humorada e uma crítica, dando uma alfinetada, principalmente nos políticos caras de pau que temos, e tentando valorizar o leitor – que é nosso patrão. Já são vinte e seis anos ilustrando a Gazeta do Povo.

Ademir Paixão, chargista.

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Apesar de fazer bastante ilustração para jornais e revistas, considero-me mais um cartunista do que propriamente um ilustrador: meu desenho é estilizado e bem simplificado, meu forte não é a técnica, mas sim o texto e a tendência pesada para o humor. Quando comecei a ilustrar para o jornal, confesso que não sabia desenhar. Quer dizer, sabia desenhar apenas tiras em quadrinhos e todo o meu desenho estava formatado para isso.

Levei um tempo para sacar algumas coisas, para não ser descritivo demais, deixar o leitor interpretar junto, não entregar o texto no desenho, essas coisas. Sempre tentei compensar o desenho com uma ideia bacana. Foram muitas, muitas horas na prancheta.

Minhas grandes influências são caras como Millôr Fernandes, Angeli, Ronald Searle, Solda, Jean e o Jaguar. Sem esquecer, claro, meu irmão mais velho, Ricardo Humberto, um pouco responsável por eu viver desse negócio de desenho.

Alberto Benett de Macedo, o Benett, cartunista da Gazeta do Povo.

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Sempre me senti um pouco culpado em ver tanta gente trabalhando duro pra fazer o jornal do dia e eu lá em minha prancheta desenhando. Quando soube depois que a primeira coisa que os leitores leem (talvez nem seja verdade) é a charge, me senti menos culpado. No entanto, até hoje, convivo com a sensação de que alguém um dia ainda vai me desmascarar e me botar pra trabalhar em alguma lavoura de hortaliças. Como dizia Millôr – nosso guru do Meier –, em tempos de ditadura, ‘o humorista tem todos os motivos pra ser preso e nenhum pra ser solto’. Com a praga do politicamente correto que ronda pegajosa por aí, a frase se mantém atual. Mas ainda prefiro, do mesmo guru, a ideia de que ‘o humor é a quintessência da seriedade’.

Tiago Recchia, chargista da Gazeta do Povo.

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De certa maneira, muito antes de Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, ou, para os íntimos, Gutenberg, a gente já contava com a ‘imprensa’. E com o que viria a receber o carimbo de caricatura, charge, cartum. Se Gutenberg inventou os tipos móveis e deu os primeiros passos abrindo passagem para o jornal, muito, muito antes, e Lascaux é prova disso, o ser humano já colocava seus rabiscos em cena – as tais pinturas rupestres.

Aliás, ainda sem retirar os méritos de Gutenberg, ele se transformou na primeira vítima da palavra impressa – até hoje há quem grafe Gutenberg com M antes do B.

– Culpa da revisão!

Deixando de lado o culpado de sempre, nos quadrinhos, charges, cartuns e genéricos, o culpado não é o mordomo. É o próprio autor/rabiscador que comete e, no crédito, assume e endossa seus erros. Melhor do que o crédito: é no débito que assume seus erros. Geralmente recorrendo à atenuante de que ‘foi de propósito’, para, no balão, ‘reforçar’ o gancho ou mote da piada...

Assim, viemos e vamos em frente. Da peninha embebida em tinta nanquim à ágil caneta UniPin e aos programas de computador.

Autodidata, posto que, na minha infância e juventude, ler muito ‘deixava a pessoa doente da cabeça’ e ficar desenhando era coisa ‘de quem não tem o que fazer’, arrisquei por conta própria entrar nesse mundo peripatético do cartum. Cheguei a justificar a ousadia como uma terapia. Pessoal e de grupo. Posteriormente de grupo.

Sofrível até no bosquejo, caso soubesse que teria pela frente – e muito à frente – profissionais de alto calibre, teria desistido da jornada. Mas, pelo menos, por onde passei como jornalista, sempre procurei abrir espaço para os emergentes bons de traço e sacadas.

Quando ingressei na Gazeta do Povo, em julho de 1993, paralelamente ao trabalho na máquina de escrever (pauteiro), passei a ilustrar matérias para a Gazetinha, os cadernos de domingo (o famoso adianto) e, com desenho ‘sério’, matérias da página policial. Arriscando até storyboards. Sem esquecer ilustrações para colunas dominicais de Paulo Francis e outros cobras.

Além do salário de jornalista, fazia jus a um extra incorporado ao salário. Aí, a caminhada – ou HQ – não tinha mais volta.

Ainda bem que no cartum não tem ‘the end’.

Francisco Camargo, o Pancho, chargista da Gazeta do Povo.

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