Deslanchar é a palavra exata. É como se o diretor do festival, Thierry Fremaux, tivesse organizado de tal forma a paginação dos filmes a fim de que a mostra competitiva fosse gradualmente impulsionada. No final de semana, entradas de peso como as do romeno Cristian Mungiu, do alemão Michael Haneke e do francês Alain Resnais fizeram a alegria dos festivaliers, embora outras, relativamente mais discretas, também fossem recebidas como exemplos de vitalidade.
O problema é que, como se sabe desde o começo dos tempos, nada é perfeito. E essa animada e bem-vinda reação na competição veio acompanhada por chuva, muita chuva, e vento o clima no sul da França está desagradavelmente instável há uma semana. Não chegou a ser um banho de água fria no animo de todos, mas com certeza tirou o brilho da montée de marches do fim de semana. Vale dizer: o encharcado tapete vermelho ficou impraticável para o desfile fashion das celebridades e para o trabalho normal dos fotógrafos. O corre-corre foi geral, nos limites do salve-se quem puder.
Mas antes das melhores imagens da reação, e ainda por conta da debilidade dos primeiros dias, há outras lamentações quanto à seleção. O italiano Matteo Garrone, que em 2008 apresentou seu filme-choque "Gomorra", reapareceu com proposta interessante, mas afinal frustrada. Em "Reality", filme sobre os efeitos que o Big Brother (ou Grande Fratello, na versão italiana) pode causar nos espíritos mais vulneráveis, não se vai além do testemunho sombrio, amargo, pouco crítico e quase nada engraçado. Ao traçar o perfil de Luciano, um napolitano comum que sonha participar das peripécias mirabolantes da folclórica casa do BB, o diretor Garrone se equivoca de procedimento, deixando escapar a oportunidade de construir uma farsa, uma comédia feroz sobre um universo onde tudo é mentira, artifício e manipulação. Fellini teria feito do caso uma caricatura à moda.
Outro que não acertou a mão foi o austríaco Ulrich Seidl, com "Paradise: Love". Primeiro de uma trilogia (já filmada) sobre três mulheres de uma mesma família, e todos sobre o mesmo tema: a busca da felicidade leva inevitavelmente ao desapontamento. Neste segmento "Love", a obesa e cinquentona Teresa vai ao Kenya atrás de amor e afeto, e com renovada disponibilidade sexual para com os jovens africanos. A exemplo de "Vento Sul", exibido no Brasil há alguns anos, o discurso em "Love" é sobre o turismo sexual como forma de opressão neocolonialista. Mas Seidl dá a impressão de que, mesmo carregado de vistosos malabarismos estéticos e direcionando sua câmera para a trilha do semidocumental, o filme se torna enfadonhamente repetitivo e não diz nada que as pessoas já não saibam. A última decepção deste momento de aquecimento veio do Egito. Uma das estreias mais aguardadas, justamente por ser o primeiro testemunho da chamada Primavera Árabe, "After the Battle", de Yousry Nasrallah, revelou-se mais oportunista do que oportuno, ao narrar alguns recentes desdobramentos políticos após a queda de Hosni Mubarak. Didático, indigesto, com personagens de credibilidade rasa e elenco solto à revelia da direção, o filme só pode ser justificado na seleção por sua urgência como registro pioneiro do nascimento de uma nova era sociopolítica no norte da África e Oriente Médio. E nas telas do Palais des Festivals, a primavera cannoise engrenou de vez a partir de "Lawless" ("Os Infratores", título incabível e tolo, batizado para lançamento no Brasil). Ambientado no período da Lei Seca, é um misto de neowestern e filme de gansgster, de boa envergadura, um filme muscular dirigido com apurado sentido visual pelo australiano John Hillcoat. Baseado em fatos reais, é a história dos irmãos Bondurant, sólidos fabricantes rurais de bebida ilegal, e da luta que travam contra a repressão representada por agente especialmente destacado para combatê-los. Escrito pelo roqueiro Nick Cave, o filme, embora não atinja as dimensões míticas de um grande filme de gangster, é entretenimento de eficiente poder de fogo, narrado em estilo sofisticado habitado e por um conjunto de atores extraordinários. Poderia não estar competindo em festivais, dado seu inegável apelo comercial. Mas está, e não deve se envergonhar por isso. O romeno Cristian Mungiu não fez por menos, e aparece mais candidato do que nunca à Palma de Ouro, premio que já ganhou em 2007 com "Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias". Representante mais notável da nova onda do cinema romeno, ele filmou "Beyond the Hills", crônica real de um exorcismo feito em 2005 em monastério cristão ortodoxo e que resultou na morte da jovem submetida ao ritual. Em estilo realista e sombrio o diretor parece fascinado em demasia por seu rigoroso formalismo , o filme não faz julgamentos sobre os fatos narrados e seus personagens principais, duas jovens amigas que se reencontram depois de muitos anos, uma delas sinceramente convertida à religião. É uma história de amor trágica, destruída pela fé, mas é também um enfoque sobre "as consequências de uma interpretação literal da religião, a obediência cega às leis", disse Mungiu na entrevista coletiva. "The Hunt" (já comprado para o Brasil pela Califórnia Filmes) marca a volta do dinamarquês Tomas Vinterberg a Cannes depois de 14 anos, quando apresentou "Festa de Familia", o primeiro representante do movimento Dogma também criado por Lars von Trier em 1995. A caçada a que se refere o título é na verdade uma caça às bruxas: professor quarentão de jardim de infância, divorciado há pouco, com nova namorada e reabilitando a relação com o filho adolescente, é acusado de abusar sexualmente de uma aluna, e logo de outros colegas dela. O ponto de partida é uma mentira contada pela menina, uma falsa acusação amplificada pela maledicência que logo beira a histeria dos pais e da pequena e asfixiante comunidade onde se passam os fatos. O professor, com a dignidade e até com a vida ameaçada, tenta provar a inocência. O filme é drama psicológico absorvente, e abraça uma tese bem definida: a de que a maioria dos adultos, quando confrontados com acusações desta natureza, acreditam instintivamente no que lhes é contado e partem cegamente para proteger os filhos, com quase nenhuma presunção de inocência para os supostos abusadores. Desde logo o roteiro deixa clara a inocência do professor Madds Mikkelsen, forte candidato a melhor ator. O final inesperado é assustador. A velhice permanece enorme tabu para o cinema, com apenas alguns filmes se propondo a uma abordagem séria do tema. Neste, e em muitos outros sentidos, "Amour" é uma digníssima contribuição. Em muitos anos o trabalho mais intimista do sempre austero Michael Haneke,, "Amor" registra os meses finais e trágicos de uma relação que durou pelo menos seis décadas. Ambos na faixa dos 80 anos, os ex-professores de musica Anne e George vivem o outono de suas vidas. E o inverno logo chega para eles, cada vez mais rigoroso com a progressiva doença da mulher e a conformada (?) disponibilidade de aceitação e cuidados do marido. Filme de rara força, "Amour" confronta os personagens (e o espectador) com a própria mortalidade. Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant criam um maravilhoso sentido de intimidade e cumplicidade. Dupla com amplo acesso à premiação. Às vésperas de completar 90 anos, Alain Resnais assina nova demonstração de extrema vitalidade física e mental na competição de Cannes com "Voces Ainda Não Viram Nada". Título metafórico, sem duvida. O argumento é sublime: falecido, célebre dramaturgo faz testamento pedindo que todos seus amigos atores que apareceram ao longo dos anos nas montagens de sua peça Eurídice se reúnam em sua casa. Lá, eles devem assistir a um vídeo recentre da montagem da peça por uma jovem companhia. Pode o amor, a vida, a morte e a o amor após a morte ainda ter o seu lugar num palco de teatro ? É isso que todos ali reunidos tem que decidir. E então Resnais vai entregando aos poucos as surpresas do filme. É obra de rara inteligência e brilho intelectual, para ser especialmente saboreada como inesquecível homenagem do cinema ao teatro, mas também como uma das mais inventivas colaborações entre as artes.
Deixe sua opinião