Quatro corpos decapitados balançam em uma ponte como carne no açougue, o símbolo grotesco de uma cidade devastada por gangues de drogas. Ao passar por ali num comboio de SUVs, Alejandro Gillick, agente misterioso na guerra às drogas dos EUA, não vacila.
“Bem-vindo a Juárez”, ele diz.
Sem lei e tremendamente violenta, a Juárez retratada em “Sicário: Terra de ninguém”, filme de ação na fronteira que foi lançado nos Estados Unidos no começo de outubro, é um tenebroso inferno mexicano.
Contudo, asseguram autoridades e moradores da cidade, é um inferno do passado – um lugar muito diferente da Juárez muito mais calma e segura de hoje em dia.
Nos últimos anos, Juárez vem se corrigindo com sucesso, afirmam os residentes.
A prefeitura está embelezando o pequeno centro colonial, e os pintores renovam casas velhas com tintas em tons de violeta e verde-limão. Escavadeiras rasgam terrenos vazios preparando-os para as equipes de construção, e as centenas de fábricas locais estão implorando por trabalhadores.
Bares e boates estão lotados, e veículos caros – antes escondidos nas garagens – aceleram nos semáforos. Em grande medida, acabaram-se os dias de crimes motivados pelas drogas, quando as pessoas corriam para casa ao anoitecer, empresas eram destruídas por incêndios criminosos e cadáveres eram um espetáculo diário.
É por isso que alguns moradores se sentem tão indignados com o retrato da cidade no filme.
Enrique Serrano Escobar, o prefeito, pediu aos moradores que boicotem o longa-metragem, e chegou a ameaçar processar seus produtores por difamação. O prefeito, que ainda não viu o filme, programado para estrear no México em dezembro, recortou anúncios de jornais norte-americanos, incluindo os do New York Times, para expressas suas objeções.
“Temos toda uma comunidade se esforçando para recuperar a imagem da cidade, e agora eles vêm e falam mal de nós”, ele declarou durante entrevista.
O filme é estrelado por Emily Blunt no papel de uma agente ingênua do FBI envolvida em uma operação nebulosa envolvendo uma constelação de policiais norte-americanos e Gillick, interpretado por Benicio del Toro. Em “Sicário”, Juárez, uma cidade com quase 1,5 milhão de habitantes, é uma metrópole empoeirada e tensa, cheia de grafites e traficantes de drogas à espreita.
Contudo, o filme estava “desatualizado”, disse Serrano, e saiu “bem na hora que nós, na cidade, estamos indo em outra direção”.
Ainda se discute por que o crime em Juárez caiu tão rapidamente. Autoridades e especialistas falam no expurgo de policiais e funcionários do judiciário corruptos, melhor treinamento policial, sentenças mais severas – incluindo prisão perpétua por sequestro, assassinato e extorsão – e iniciativas enérgicas por parte de grupos da comunidade. Alguns especialistas, no entanto, acreditam que o fato teve mais a ver com um acordo entre os cartéis de Sinaloa e Juárez, em guerra.
E mesmo que o derramamento de sangue tenha caído em Juárez, ele explodiu em outros lugares. O país ainda se recupera do desaparecimento, no ano passado, de 43 estudantes de uma cidade rural no estado de Guerrero, e a violência entre gangues transformou Acapulco, balneário na costa do Pacífico, na cidade mais mortal do país no ano passado.
Por e-mail, Denis Villeneuve, o diretor do filme, disse que o longa-metragem foi concebido em 2010, no auge dos problemas de Juárez.
“Não tínhamos a intenção de prejudicar os cidadãos da cidade com nosso filme. As pessoas que estão lutando pela paz merecem o nosso respeito”, afirmou Villeneuve.
Contudo, a indignação de Serrano ecoou entre moradores, empresários, pastores e líderes comunitários, ansiosos em apagar a má reputação local.
Alguns manifestantes se reuniram na ponte entre Juárez e El Paso, nos Estados Unidos, em dois de outubro, com cartazes que declaravam seu amor pela cidade e exigiam respeito.
Integrantes de um grupo de Juárez no Facebook que organiza projetos comunitários debatiam se deveriam assistir ao filme – visto por algumas pessoas em El Paso – e com que exatidão os piores anos da cidade foram retratados.
“O filme é duro, mas é real. Na verdade, a realidade era muito pior”, afirmou Salvador Cisneros, pintor e decorador de Juárez que viu a fita recentemente durante viagem a Atlanta.
A mudança de Juárez começou em 2012 e foi radical. Os sequestros despencaram – oficialmente não houve nenhum durante 20 meses – e a taxa de homicídio caiu de oito por dia durante os piores momentos, em 2010, para de 20 a 30 por mês agora.
Empresas e viajantes perceberam a mudança. Os hotéis de Juárez têm taxa de ocupação de quase 70 por cento, contra algo entre 20 e 40 por cento durante o auge da violência.
Serrano, o prefeito, se aliou à prefeitura de El Paso, para promoverem investimentos conjuntos em viagens a cidades como Detroit e Chicago.
Todavia, mudar a imagem da cidade é um processo lento, e empresários e autoridades temem que “Sicário” prejudique o desenvolvimento econômico.
“Se você viu esse filme nos Estados Unidos ou na Europa e estava pensando em vir para cá, provavelmente não virá. Se estava pensando em investir, provavelmente não investirá”, disse Serrano.
Os moradores também reclamavam do fato de o filme não ter sido rodado em Juárez.
A ação transcorre entre o México e os EUA, mas, por causa de temores pela segurança, os produtores filmaram em Albuquerque, Novo México, El Paso e na Cidade do México.
“Pelo menos eles criaram uma sorte inesperada para a cidade”, afirmou Liliana Pérez, estudante de MBA que fundou uma campanha por Juárez no Facebook meses atrás.
Roberto Herrera, um dos sócios de uma praça de alimentação daqui, onde os fregueses recentemente comiam tacos e crepes enquanto assistiam a um filme de “Guerra nas Estrelas” em um telão, disse que tantos clientes estavam vindo de El Paso nos finais de semana, e que o local era tão popular, que os sócios iriam abrir outra praça em outubro. Herrera teme que o filme afaste os visitantes.
“Nosso medo é que o filme possa afastar as pessoas. É uma coisa preocupante”, explicou.