Admirada pelo tratamento que dá a CDs de música, a Biscoito Fino põe os pés na literatura e lança Encontro Marcado com o Cinema de Fernando Sabino e David Neves, DVD com dez curtas-metragens, cada um com mais ou menos nove minutos de duração, produzidos pela Bem-Te-Vi Filmes, empresa criada pelo escritor Fernando Sabino (1923 – 2004) em parceria com o cineasta David Neves.

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Realizados na primeira metade dos anos 70 em película de 35 mm, filmes retratam alguns dos escritores e intelectuais mais importantes da história recente do Brasil.

Do ponto de vista técnico, os curtas têm várias limitações. Os realizadores chegam a fazer entrevistas com a câmera mal posicionada, contra a luz, transformando o personagem em uma silhueta – isso acontece, por exemplo, com Jorge Amado, o criador de Gabriela Cravo e Canela.

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Sabino ganhou fama com o romance O Encontro Marcado e, mais tarde, tornou-se célebre como cronista. A experiência do escritor no cinema tem um quê literário – como quando registra longas caminhadas dos autores que homenageia, ao som de uma narração em off. Esses passeios, aliás, são uma espécie de "marca" em seus filmes.

Erico Verissimo caminha ao lado da mulher Mafalda pelo bairro porto-alegrense de Petrópolis, Carlos Drummond de Andrade é acompanhado no trajeto até o Ministério da Educação, no Rio, e Manuel Bandeira vai da mercearia à sua casa, onde prepara um café, assopra a boca do fogão, serve-se de leite e senta-se em frente à janela para um lanche.

Esse episódio sobre o poeta de "Os Sapos", tem o melhor visual de todos e é um dos dois que não foram filmados por Sabino. O escritor utilizou as imagens de O Poeta do Castelo, de Joaquim Pedro de Andrade. Com uma fotografia impecável em preto-e-branco, mais a narração poética de Bandeira, tornou-se um marco do Cinema Novo. "Gosto muito de crianças. Não tive um filho meu. Um filho! Não foi de jeito... Mas trago dentro do peito meu filho que não nasceu", declama Bandeira.

O segundo título que não foi dirigido pela dupla Sabino-Neves é O Curso do Poeta, sobre João Cabral de Melo Neto, rodado por Renato Newman.

A uma certa altura dos curtas-metragens, dá para perceber que o talento de Sabino era menos o de ser um diretor e produtor de cinema do que de ter acesso a figuras singulares da cultura nacional. Um Contador de Histórias, título perfeito para Erico Verissimo, mostra o autor de O Tempo e o Vento em momentos hilários de intimidade, encenando para os netos um duelo de samurais ou se declarando à mulher Mafalda. "Preciso de sua presença vigilante e amorosa", diz o gaúcho. Durante o passeio de Verissimo, o espectador é levado até o sobrado onde ele passou a infância, "em busca do menino que nunca deixou de existir", e vê também o hotel Majestic, residência do poeta e amigo Mario Quintana.

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Vinicius de Moraes, retratado em Música, Poesia e Amor, relembra um dos primeiros poemas que escreveu, aos 6 anos, para uma menina de 7. "Na minha juventude, sempre tive atração por mulheres mais velhas que eu."

Moraes diz que se descobriu ao ler a poesia do pai, encontrada por acaso em meio às coisas da família. "Senti que aquela era minha forma de expressão." Relacionando os poetas que mais o influenciaram, Moraes faz uma confusão que não deixa de ser engraçada. Diante de um copo boca-larga (com uísque, obviamente), ele cita Charles Baudelaire, Paul Verlaine e um certo "Jacques du Rimbaud", na verdade, Arthur Rimbaud, autor de Uma Temporada no Inferno.

"Manuel Bandeira me conduziu à realidade", admite, para depois listar as parcerias musicais que definiram sua carreira, de Tom Jobim até Toquinho. Em uma das sacadas de Sergio "Stanislaw Ponte Preta" Porto, este fala que existiam diversos Vinicius de Moraes – por isso o plural do seu nome. Um dos momentos mais marcantes do filme acontece ao som de "Garota de Ipanema", tocada pelo saxofonista Stan Getz, com o narrador falando de uma "vida vivida sob o signo da poesia, da música e do amor".

O curta-metragem mais revelador talvez seja o de Drummond, O Fazendeiro do Ar, um dos quatro mineiros filmados pelo também mineiro Sabino – os outros são Pedro Nava, Afonso Arinos de Mello Franco e João Guimarães Rosa (uma "máfia" mineira). Com os óculos pesados e um terno alinhado, fica difícil imaginar o escritor de "No Meio do Caminho", o poema da pedra, sendo brincalhão.

Pois Drummond acaba encenando uma esquete digna de Buster Keaton – ele aproveita a edição de imagens para "desaparecer" e "reaparecer" entre as colunas do Ministério da Educação. E termina gargalhando para a câmera no final (diz a lenda que ele estava se exibindo para uma moça com quem trabalhava no prédio público).

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"Tudo vem do contato inicial com a palavra impressa", revela Drummond, explicando a "impressão muito forte" que tinha diante de textos mesmo quando não era capaz de lê-los. Chega a falar até de religião, citando a influência de franceses como Anatole France no seu modo de pensar. "Acho admirável que os outros tenham religião", diz, como se ele se desculpasse por não ter uma.

Pedro Nava, médico reumatologista autor de seis volumes autobiográficos – obra fundamental do memorialismo no Brasil –, aparece carismático para Sabino e Neves. Sentado em seu escritório, a três passos de um armário cuja porta está repleta de recortes de jornais com astros e estrelas do cinema (Charles Chaplin, Greta Garbo e outros) dividindo espaço com figuras importantes das literaturas "mineira" (Afonso Arinos) e mundial (Baudelaire), ele fala sobre a opção pelas memórias.

"Essa minha entrada na velhice, o meu isolamento progressivo, em parte criado por mim mesmo, que cada vez gosto menos da companhia dos outros, implica numa introspecção de que resultou esse negócio, essa necessidade de escrever memórias. Eu gosto de fazer aquilo, mesmo que não fosse publicar, eu continuaria escrevendo. E memória não tem fim, é o tipo da obra boa de fazer, não é? Nós estamos fabricando memória a cada instante", diz Nava, que se suicidou em 1984.

O episódio Veredas de Minas é o único que não conta com imagens do escritor em questão, João Guimarães Rosa, morto em 67. Ainda assim, é dos documentários mais valiosos por ir em busca dos personagens que inspiraram a obra do autor de Grande Sertão: Veredas, como Manuel Mardi, o "Manuelão", e Zito, que explica o significado de vereda: "É um lugar mole com um capinzinho fino e esses pés de buriti".

Menos conhecidos, o escritor José Américo de Almeida e o diplomata Afonso Arinos protagonizam dois dos curtas mais fracos. O de Jorge Amado é o pior. Em meio a conversas sobre a elegância de Dorival Caymmi, o filme não passa de uma lista de amigos e conhecidos do escritor baiano. Mais nada.

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