O cinema de Park Chan-wook costuma guiar o espectador por espaços e tempos às vezes inesperados, que fornecem pistas para entender o estado de espírito de seus personagens. “A Criada”, o mais recente filme do autor de “Oldboy” (2003), que estreou nesta quinta-feira (12) em Curitiba, por exemplo, é ambientado nas suntuosas dependências de uma mansão da Coreia dos anos 1930, à época ocupada pelo governo japonês. O lugar ilustra o momento de transição atravessado pelo país, que reverbera nos seus ocupantes.
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“A casa que imaginamos funde estilos arquitetônicos britânicos e japoneses, que refletem o comportamento dos personagens da história. Eles removem os calçados quando passam da biblioteca, de decoração britânica, para a sala de estar, de inspiração japonesa, por exemplo”, lembrou o realizador de 53 anos, grande estrela do chamado novo cinema coreano, durante o Festival de Cannes, em maio passado, onde “A Criada” competiu pela Palma de Ouro. “Minha intenção era sublinhar os elementos de modernidade e a mistura de culturas que marcaram a Coreia naquele período.”
Os ambientes de “A Criada” sugerem sofisticação, mas sua história fala de pulsões humanas quase primitivas. O enredo articula-se em torno da órfã Sook-hee (Kim Tae-ri), punguista coreana cooptada pelo trambiqueiro Fujiwara (Ha Jung-woo) para ajudá-lo em um golpe milionário. Passando-se por um nobre japonês, Fujiwara oferece Sook-hee para trabalhar como a mucama pessoal de Hideko (Kim Min-hee), a instável herdeira de Kouzuki (Jo Jin-woong), um colecionador japonês. O pilantra só não contava que as duas moças acabassem se tornando amantes.
Aqui, o diretor retoma o erotismo de filmes anteriores, como “Sede de Sangue” (2009), desta vez enfatizando a carga sexual entre as duas protagonistas femininas. Algumas cenas mais picantes envolvem elementos de sadismo, incesto e até de humor (perverso), mas todas filmadas com a elegância visual característica até nos títulos mais violentos do diretor. O filme toca em um tema ainda tabu para as plateias sul-coreanas – o amor entre mulheres – mas Chan-wook diz que distribuiu o peso erótico com os demais personagens masculinos da trama.
“Todos eles têm uma dimensão feminina. Há pouco tempo li textos de Balzac que me ajudaram a perceber que todos os grandes homens são dotados de sensibilidade feminina”, filosofou o cineasta, antes de defender a necessidade de cenas de sexo quando ela se faz necessária. “Embora o filme fale de dois homens e de duas mulheres, fica claro que o amor entre essas duas mulheres é a chave da história. Não há como contornar o ato resultante desse amor, dessas emoções e desses desejos. Seria como fazer um filme de guerra sem batalhas.”
Da Inglaterra vitoriana à Coreia
“A Criada” é livremente inspirado no romance “Na Ponta dos Dedos”, da escritora galesa Sarah Waters. No livro, a ação se passa na Inglaterra vitoriana e descreve a estratégia de aproximação de uma mulher pobre em direção a uma senhora de posses, para, então, tomar o lugar dela. Chan-wook disse que “sempre teve curiosidade pela literatura estrangeira, que fala de nações completamente diferentes’‘ da qual ele vive. O diretor explicou que encontrou no texto de Sarah o pretexto para rever um período da história da Coreia em que parte da população se deixou seduzir pelos invasores.
“Muitos se aproximaram dos japoneses por razões financeiras, outros por admiração pessoal, mesmo. Esses últimos são os mais assustadores. Queria investigar as motivações dessas pessoas que eram tão fascinadas pelos japoneses, e por essa ideia de um orientalismo multicultural”, observou o diretor, que teve contato com o livro de Sarah ainda no início dos anos 2000. “A coisa mais interessante que encontrei em ‘Na Ponta dos Dedos’ foi o dilema emocional das duas personagens, que se debatiam entre a culpa e o amor. Minha ideia foi transferir esse conflito interno para a Coreia sob o julgo japonês”, conta.
A repercussão internacional de “A Criada”, premiado por várias associações estrangeiras de críticos, serviu para abrandar o relativo fracasso de “Segredos de Sangue” (2013). Protagonizado por Nicole Kidman e Mia Wasikowska, o thriller sobre as tortuosas ligações entre mãe, filha e tio marcou a primeira experiência de Chan-wook com uma produção de língua inglesa. O diretor reconhece que o relacionamento com a Fox Searchlight, o estúdio americano que produziu o filme, ficou tenso durante a fase de edição, mas o episódio não o desmotivou a aceitar novos projetos fora de seu país.
“Passar por todas aquelas discussões foi doloroso, porque eu não estava acostumado. Mas me fez pensar mais no filme em si. No final das contas, fiquei satisfeito com o produto final. O processo me fortaleceu”, analisou o diretor, que ganhava a vida como crítico antes de seu primeiro longa, o drama de guerra “Zona de Risco” (2000), que competiu em Berlim. “Só escrevia sobre os filmes de que gostava, porque desejava fazer filmes e não queria irritar produtores coreanos com uma crítica ruim dos filmes deles [risos].”
Violência
Chan-wook ganhou prestígio no circuito internacional com histórias violentas, movidas por sentimento de culpa e desejo de vingança. O diretor ganhou notoriedade com os títulos da Trilogia da Vingança, composta por “Mr. Vingança” (2002), “Oldboy” (2003) e “Lady Vingança” (2005), série que ganhou honrarias e admiradores nos quatro cantos do mundo, inclusive em Hollywood - em 2013, Spike Lee lançou uma refilmagem do sucesso de 2003. “Sede de Sangue”, sobre vampiros modernos e as tentações da carne, lhe valeu o prêmio especial do júri do Festival de Cannes.
O tema da revanche, “impulso inerente ao ser humano”, atravessa cada um dos títulos de sua obra. Quando associado à culpa, seus efeitos são potencializados. Embora tenha sido criado como católico, Chan-wook diz que sua obsessão pela ideia de culpa está mais relacionada a um trauma de sua formação política do que propriamente à religião.
“Cresci em um período de muita turbulência, em que movimentos estudantis lutavam pela democracia no país. Vi vários amigos sendo presos e torturados; outros foram obrigados a se alistar no exército antes da idade obrigatória, como punição. Testemunhei amigos e colegas lutarem contra a ditadura, com graves consequências para eles. Não tomei parte daqueles movimentos de resistência e sempre me senti culpado por causa disso”, lembrou o diretor. “Na verdade, muitos da minha geração compartilham deste sentimento. Eu acabei canalizando essa culpa para os meus filmes.”
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