O nome de Charlie Kaufman nos créditos de um filme significa sempre uma promessa de inventividade e surpresa na tela.
Sete anos depois da estreia na direção com o ambicioso e claudicante “Sinédoque, Nova York” (2008), um dos mais inquietos roteiristas do cinema americano atual volta à realização com o aparentemente mais simples “Anomalisa” (2015), que estreia nesta quinta-feira (3) no Cineplex Batel, em Curitiba (confira os horários no Guia).
Porém, a trivialidade da história de um sujeito entediado que experimenta uma epifania em um encontro amoroso durante uma viagem de negócios é enganosa: o vencedor do Oscar de melhor roteiro original por “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004) expõe com dolorosa crueza fraturas da sociedade contemporânea como a desconexão com a realidade e a incomunicabilidade humana.
Codirigido com Duke Johnson, o filme foi a primeira animação a ganhar o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza e está concorrendo ao Oscar da categoria.
“Anomalisa” começa com a chegada do autor de livros de autoajuda Michael Stone (voz de David Thewlis) a Cincinnati, cidade em que dará uma palestra motivacional.
Ele segue do aeroporto direto para o hotel, de onde liga para uma ex-namorada convidando-a para sair.
O encontro, porém, é desastroso: Bella não superou a traumática separação com Michael – agora casado com outra mulher e pai de um garoto.
A Mona Lisa
Anomalisa pode ser lido como o anagrama em inglês “a Mona Lisa”. “Uma Mona Lisa” é justamente o que Michael procura – uma busca fadada ao fracasso por alguém que o salve de uma vida ordinária.
Depois da saída intempestiva da antiga amante do bar do hotel, o homem conhece por acaso duas jovens que foram ao local para assistir à sua conferência.
A visão de Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh) desperta Michael de seu torpor existencial: alguma coisa na comum e desajeitada telefonista de serviço de atendimento ao cliente faz com que ela aparente e soe diferente de todas as outras pessoas do mundo aos olhos e ouvidos dele.
Concebido originalmente como uma peça de teatro, “Anomalisa” virou filme graças a um financiamento coletivo. O toque surrealista de Charlie Kaufman revela-se depois de alguns minutos de filme, quando o espectador percebe que todos os rostos dos bonecos-personagens que cruzam pelo caminho de Michael são iguais.
Mais: todas os homens, mulheres e crianças – à exceção de Lisa – têm a mesma voz, dubladas pelo ator Tom Noonan.
Desconcertante
Em “Anomalisa”, as referências a outros filmes assinados pelo roteirista Charlie Kaufman são evidentes: o tema da identidade como uma instável projeção social construída pelo indivíduo é central em filmes como “Quero Ser John Malkovich” (1999), “Natureza Quase Humana” (2001) e “Adaptação” (2002).
Os bonecos também já tinham aparecido em “Quero Ser John Malkovich” – John Cusack é um titereteiro que descobre uma porta que dá acesso à mente do famoso ator na comédia dramática dirigida por Spike Jonze.
Filmado quadro a quadro, na técnica conhecida como stop-motion, Anomalisa propõe um curioso jogo de aproximação e distanciamento: utilizada normalmente para narrar uma história fantástica, a animação está a serviço aqui de uma trama de tom realista e quase corriqueiro – apesar da multiplicação de faces idênticas em cena.
Esse movimento pendular entre familiar e estranho provoca uma reflexão paradoxal: o enredo de “Anomalisa” é tão próximo do cotidiano que precisa ser contado de maneira artificiosa para que possamos enxergar melhor sua autenticidade desconcertante.
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