No início, foi um não. Embora jamais tivesse lido um gibi de super-heróis até o convite do diretor Scott Derrickson para encarnar no cinema o Doutor Estranho, um dos mais cultuados personagens do universo Marvel, Benedict Cumberbatch devorou boa parte dos quadrinhos criados por Stan Lee e Steve Ditko em 1963 até oferecer seu veredicto, entre um e outro ensaio do “Hamlet” que estrelaria com sucesso em seguida em Londres: temática e arte eram tão interessantes quanto datadas.
Um diretor de altos e baixos, conhecido por fitas de terror como a premiada “O exorcismo de Emily Rose” (2005) e a bomba “Livrai-nos do mal” (2014), Derrickson não se deu por vencido e assegurou a escalação do ator indicado ao Oscar em 2015 pelo seriíssimo “O jogo da imitação” ao vender seu “Doutor estranho” como um mix de “A origem” (2010), de Christopher Nolan, a franquia “Matrix”, dos irmãos Wachowski, e as animações do japonês Hayao Miyazaki.
“E não se esqueça de incluir “Magical mystery tour”, dos Beatles”, diz, sorriso aberto, o ator inglês de 40 anos. “Amei os “Batman” de Tim Burton, sei os diálogos de Michael Keaton de cor, mas tenho zero cultura de gibi. O caldeirão de imagens oferecido por Scott, no entanto, e meu interesse em experimentar o cinema populista criado pela Marvel, que fala o que o espectador quer ouvir, mas ao mesmo tempo oferece pontos de vista conflitantes de forma inteligente, me convenceram.”
O filme, que estreia nos cinemas nesta quarta-feira (02), não oferece, como “Guardiões da galáxia” (2014), uma lufada de vanguarda ao catálogo de títulos da Marvel desde o primeiro “Homem de Ferro”, em 2008. Mas, além de um elenco que não faria feio em “Hamlet”, com destaque para os também britânicos Tilda Swinton (Anciã) e Chiwetel Ejiofor (Mordo), “Doutor Estranho” é o primeiro a passear por seara virgem nas adaptações de gibis de super-heróis, a interseção de ciência e magia com direito a teorias enviesadas sobre universos paralelos.
“Scott me ajudou muito na construção do personagem. Ele é especialista em lidar com algo que vai além da realidade. Minha imaginação não consegue me convencer de que há sangue e não tinta em filmes de terror, por exemplo”, afirma o ator.
Na primeira parte do filme, o Stephen Strange de Cumberbatch se aparenta com algumas de suas criações de maior destaque, seres por ele mesmo definidos como “inteligentíssimos párias sociais”. Personagens como o matemático Alan Turing (1912-1954) de “O jogo da imitação”; o idealizador da WikiLeaks, Julian Assange, de “O quinto poder”; e o afetivamente ambíguo Sherlock Holmes da série da BBC.
Na produção estimada em US$ 165 milhões, o neurocirurgião baseado em Nova York é um devoto da ciência, mas tem sérios problemas de relacionamento. Sua única ligação afetiva é com a ex-namorada (Rachel McAdams). Quando ele sofre um acidente de carro que inutiliza suas mãos, seu mundo cai.
“Aí começa a viagem que é esse filme. Nos quadrinhos, Stephen é arrogante e não está nem aí para isso, o que acaba sendo cômico, um efeito interessante, mas também repetitivo. Scott humanizou o personagem, utilizando os elementos já oferecidos por Lee e Ditko, como o orientalismo e o misticismo que bebem de certa lógica científica, ma non troppo”, diz Cumberbatch.
A ação no filme se dá quando Strange decide, como última chance para a recuperação, viajar até o Nepal, onde põe seu ceticismo em xeque e abraça, com relutância, o misticismo representado pela Anciã, que vive em uma espécie de templo budista. Apesar de não escapar dos clichês gringos ao retratar tradições asiáticas, Derrickson acertou ao convocar Tilda para o papel da mentora.
“Foi assim como se alguém perguntasse: topa ser a mulher barbada, ou fazer piruetas em cima de um pônei? Um convite para fazer parte de um dos melhores circos do planeta”, resume a atriz.
Diretor e elenco, se lambuzaram sem culpa de “pó de pirlimpimpim”. Cores e efeitos especiais se multiplicam como nunca antes vistos em filmes da Marvel. Dois dos personagens “circenses” mais importantes, o ultraético mago Mordo de Ejiofor, que funciona como consciência de Strange, e o vilão Kaecilius, vivido pelo dinamarquês Mads Mikkelsen, da série de TV “Hannibal”, se dedicam à destruição da dimensão em que vivemos. Entre os artefatos favoritos dos fãs marcam presença a Capa da Levitação e o Olho de Agamoto, amuleto capaz de alterar a noção do tempo.
“Pode-se até estabelecer paralelos com os momentos mais tenebrosos de “Capitão América: Guerra Civil” (2016), mas nossa viagem é mais psicodélica, como se tivéssemos mergulhado numa obra de pop art”, diz Cumberbatch.
É até possível pinçar referências a Robert Rauschenberg (1925-2008) no cinema-pipoca de Derrickson, mas a declaração do ator acaba por ilustrar o motivo central dado pelo presidente da Marvel para a decisão de se atrasar quase um ano as filmagens do longa, para garantir a presença de um Cumberbatch pós-Hamlet na tela.
“Para esse filme funcionar, o protagonista tinha de ser alguém tão intelectual e sofisticado quanto o próprio Stephen Strange”, diz Kevin Feige, que assina também a produção do filme.
Quiçá o mais improvável dos símbolos sexuais da Hollywood do século XXI, Cumberbatch, que é casado com a diretora de teatro de vanguarda inglesa Sophie Hunter e espera seu segundo filho, acha graça por ser visto como “o namoradinho virtual” do cinema americano. Às suas fãs - pejorativamente chamadas de cumberbitches, algo, em tradução leve, como “as safadinhas do Benedict” - certamente se juntarão, em breve, os marmanjos de olho no novo filme dos Vingadores, que terá em Stephen Strange um dos personagens centrais.
“Começamos a filmar em janeiro. Estou curioso para saber o meio-termo que os irmãos (Anthony e Joe) Russo encontrarão para incluir o visual psicodélico do Doutor Estranho na trama. Relutei em viver o personagem, e agora não vejo a hora de voltar a colocar aquela capa, por mais estranho que pareça”, brinca o ator, usando cuidadosamente o adjetivo final do bate-papo.
Moraes retira sigilo de inquérito que indiciou Bolsonaro e mais 36
Juristas dizem ao STF que mudança no Marco Civil da Internet deveria partir do Congresso
Idade mínima para militares é insuficiente e benefício integral tem de acabar, diz CLP
Processo contra Van Hattem é “perseguição política”, diz Procuradoria da Câmara
Deixe sua opinião