Décadas atrás, o aclamado escritor e pensador James Baldwin percebeu que “o nosso conceito de entretenimento é difícil de distinguir do uso de narcóticos”.
Isso foi antes do Twitter. Antes da Netflix. Baldwin, aliás, escreveu isso antes que a Internet pudesse sequer ser imaginada.
Mas suas palavras – aparecendo em voice-over enquanto passam cenas de programas de auditório contemporâneos e talk-shows vespertinos, em “Eu Não Sou Seu Negro”, que concorre ao Oscar de melhor documentário – parecem mais atuais do que nunca.
“Ele entendeu já as coisas”, diz o diretor Raoul Peck sobre Baldwin, “porque analisou a sua base. É por isso que o seu juízo continua atual”.
As pessoas são bombardeadas por imagens que ensinam “algo assustador de verdade sobre a noção de realidade dos EUA”, diz Baldwin no filme. Imagens “feitas não para perturbar, mas para reconfortar”.
Com “Eu Não Sou Seu Negro”, que estreia no Brasil no próximo dia 16, Peck parece estar concluindo um manuscrito inacabado de Baldwin para um livro dele que “contaria a história dos EUA através das vidas de três dos seus amigos que acabaram assassinados: Medgar Evers, Martin Luther King Jr. e Malcolm X”, declara a sequência de abertura do filme.
E, dentro disso que já é uma exploração de uma obra de peso, se encaixa ainda um outro tema imenso: a representação de brancos e negros em Hollywood, e os modos como o entretenimento e a cultura pop refletem a história distorcida dos EUA.
“Ele tem uma obra extensa escrita sobre filmes de Hollywood”, diz Peck sobre Baldwin. “Provavelmente um dos melhores críticos do país”.
“Ele nos mostra como, basicamente, foi Hollywood que fabricou a imagem do negro”, acrescenta Peck. Baldwin explicou como “o entretenimento não é inocente. Que tudo que nos foi alimentado e tudo que vemos hoje – uma bagunça ainda maior do que era 40 ou 50 anos atrás – é parte de uma ideologia, parte de uma narrativa, que não é nossa, sobre a qual nós, como negros, não tivemos poder de decisão”.
Genocídio
Baldwin, que morreu em 1987, foi um dos intelectuais públicos de maior destaque do país, tendo escrito romances, peças, críticas sociais e textos jornalísticos.
Em sua tentativa de dar voz à visão de Baldwin sobre os EUA, Peck justapõe cenas de clássicos do cinema e westerns das antigas – “King Kong”, “Um Pijama para Dois”, “No Calor da Noite” – com imagens históricas e contemporâneas de protestos, violência policial e de crianças negras convivendo com a segregação racial. Enquanto isso, ouvimos as palavras de Baldwin, enunciadas pelo próprio ou na voz de Samuel L. Jackson.
Peck nos mostra John Wayne em filmes como “No Tempo das Diligências”, de 1939, e cenas de caubóis matando índios que, dado o contexto histórico, significavam que estávamos “assistindo a um genocídio”, segundo Peck. “De algum modo, aquilo para nós era entretenimento”.
São mostradas cenas de uma adaptação para o cinema de “A Cabana do Pai Tomás”, que mostram Tomás perdoando aqueles que o mataram. Baldwin influenciou imensamente a percepção pública do romance do século 19 com uma crítica violenta em 1949. No documentário de Peck, ele explica que ele não enxergava Tomás como um herói, porque ele se recusava a se vingar, “a fazer justiça com as próprias mãos”.
“Os heróis, até onde eu vejo, eram brancos – e não meramente por conta dos filmes, mas por conta da terra em que eu vivia, da qual os filmes eram simplesmente um reflexo”, diz Baldwin. “Eu desprezava e temia aqueles heróis, porque eles se vingavam e faziam justiça com as próprias mãos. Eles achavam que a vingança pertencia a eles, e, sim, eu compreendi isso. Meus compatriotas eram meu inimigo”.
Plateias brancas
Em “Eu Não Sou Seu Negro”, Baldwin explica os modos pelos quais a indústria do entretenimento apresentou cenas que procuravam reconfortar as plateias brancas e não negras. Por exemplo, há o momento do clímax do filme “Acorrentados”, de 1958, em que uma dupla de fugitivos que escaparam da prisão persegue um trem para a liberdade. O preso negro consegue alcançar o trem, mas salta dele depois que vê que o preso branco não conseguiu acompanhá-lo.
Apesar do alívio dos brancos liberais na plateia, comenta Baldwin no documentário, os negros gritavam, “Volta lá no trem, seu burro!”
Ele continua: “O negro salta do trem para acalmar os brancos, para eles saberem que não são odiados”.
“Os heróis, até onde eu vejo, eram brancos – e não meramente por conta dos filmes, mas por conta da terra em que eu vivia, da qual os filmes eram simplesmente um reflexo”
Peck, cujo filme “Lumumba”, de 2000, lhe garantiu sucesso mundial, se lembra dos sentimentos conflitantes de assistir a esse tipo de filme quando era novo.
Por exemplo, ele sentia orgulho ao ver o personagem de Sidney Poitier em “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” – um homem negro com boa educação, respeitável, profundo –, mas havia ainda “uma sensação de desconforto” com essa “imagem tão elitista”.
“A mensagem era: se você for negro, para conseguir se encaixar você vai precisar ser muito articulado, muito bonito, ter um PhD, ser doutor”, diz Peck. “Do contrário, você não terá a menor chance de conquistar a mocinha do filme. Isso colocava a régua numa posição muito alta para a maioria dos negros”.
Baldwin articula esse desconforto e descreve como, apesar do status de protagonista de Poitier, negros como ele não eram representados como sex symbols – eles eram seres quase assexuais. Com “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, diz Baldwin, as plateias negras sentiram que “Sidney estava, com efeito, sendo usado contra elas”, para acalmar os brancos.
Além do entretenimento
Enquanto num momento Baldwin fala de Doris Day, no outro ele comenta a segregação nas escolas e o assassinato de Evers. Quando Baldwin fala de cinema, ele “está nos dando a chave para entender o que esse filme em particular estava transportando, além do entretenimento”, diz Peck. “Ele nos deu todas as camadas”.
Essas camadas são ainda mais significativas em 2017, um momento em que a cultura pop nunca esteve mais poderosa. Basta olhar para a Casa Branca, à qual o presidente chegou após utilizar com sucesso as capacidades de showman que aperfeiçoou no horário nobre da televisão.
A desconstrução dessa tal cultura feita por Baldwin pode nos ajudar a entender isso tudo, diz Peck.
“Quando você se flagra assistindo essa avalanche daquilo que chamam de reality shows”, diz Peck, “você precisa se perguntar, qual é o propósito disso? Eles têm, na verdade, mais de ‘reality’ ou mais de ‘show’? E, se for um show, o que é que ele faz contigo?”
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