Encerrando um jejum de 10 anos sem lançar filmes depois da consagração de “Santiago”, o documentarista João Moreira Salles apresentou no último fim de semana, na Panorama Dokumente da 67ª edição do Festival de Berlim, seu novo trabalho, “No Intenso Agora”.
O filme é narrado em primeira pessoa e reflete sobre o que revelam quatro conjuntos de imagens da década de 1960: os registros da revolta estudantil francesa em maio de 68; os vídeos feitos por amadores durante a invasão da Tchecoslováquia em agosto do mesmo ano, quando as forças lideradas pela União Soviética puseram fim à Primavera de Praga; as filmagens do enterro de estudantes, operários e policiais mortos durante os eventos de 68 nas cidades de Paris, Lyon, Praga e Rio de Janeiro; e as cenas que uma turista – a mãe do diretor – filmou na China em 1966, ano em que se implantou no país a Grande Revolução Cultural Proletária.
O roteiro e o texto foram escritos pelo diretor e a montagem foi realizada por Eduardo Escorel e Laís Lifschitz.
Salles – acompanhado de Escorel e Lifschitz – reuniu numa sala do Lounge do Palácio dos Festivais da Berlinale, um pequeno grupo para uma mesa redonda sobre o filme e convidou a Gazeta do Povo.
O diretor começou lembrando que dez anos separam “No Intenso Agora” de “Santiago” e, apesar do tempo decorrido, ele tem a impressão de que são filmes aparentados.
“Não me refiro apenas ao aspecto pessoal dos documentários, mas também ao modo como eles foram realizados. Os dois são essencialmente filmes de arquivo, nascidos na ilha da edição”, disse o cineasta acrescentando que “Santiago” surgiu do trabalho de três pessoas de três gerações diferentes (ele, Escorel e Lívia Serpa), que construíram o filme a partir da reflexão que fizeram sobre a natureza do material bruto que haviam reunido.
“’No Intenso Agora’ nasceu da mesma forma, mas com Laís Lifschitz, no lugar de Lívia. A diferença é que levou mais tempo, não meses, mas anos. Eu enviei o primeiro material para o Escorel para que ele dissesse se havia um filme ali”, contou o diretor.
“Quando o João me mandou o que já tinha feito, eu disse sim. Eu já conhecia o material da China, que eu acho que é o mais importante. O filme nasce ali”, definiu Escorel.
Memórias
Com tantas lembranças geradas pelas filmagens feitas por sua mãe – além de suas próprias memórias, já que era criança e estava em Paris em maio de 1968 – Salles destacou que as imagens, todas elas de arquivo, revelam não só o estado de espírito das pessoas filmadas, como também a relação entre registro e circunstância política.
“Eu queria entender, entre outras coisas, como os participantes de movimentos sociais e políticos lidam com a frustração quando os sonhos revolucionários acabam não se concretizando. E também o que se pode dizer de Paris, Praga, Rio de Janeiro e Pequim a partir das imagens daquele período. E ainda, por que cada uma dessas cidades produziu um tipo específico de registro”, questiona o cineasta, que está em Berlim numa função dupla.
Além de acompanhar “No Intenso Agora”, Salles junto com o documentarista alemão Andres Veiel – que concorre ao Urso de Ouro com “Beuys” – participará de um encontro no “Berlinale Talents” para analisar a influência de revoluções e figuras revolucionárias passadas no mundo atual. Nesse encontro deverão ser abordados os filmes com os quais ambos os cineastas estão no festival.
Senegal na Mostra Oficial
Na disputa para o Urso de Ouro, Félicité, do diretor senegalês Alain Gomis foi muito em recebido. Gomis está de volta à Berlinale, onde concorreu em 2012 com “Tey” (“Hoje”).
O filme é a história de Félicité, mãe solteira e cantora de um grupo folclórico em Kinshasa (Congo), que mora com Samo, seu filho de 16 anos. A protagonista é vivida pela atriz congolesa Véro Tshanda Beya e o elenco conta ainda com Gaetan Claudia e Papi Mpaka,
Uma manhã ela recebe um comunicado do hospital que Samo teve um acidente e corre o risco de perder a perna, a menos que ela tenha o dinheiro para pagar uma cirurgia. Ela parte, então, numa busca desesperada em toda a cidade para levantar a quantia necessária.
As locações foram realizadas em Kinshasa e no Senegal e a música é uma mistura de canções modernas e outras profundamente enraizadas na tradição africana.
Esse, por sinal, é um dos motes do filme mesclando tradição e modernidade, uma fórmula popular entre os cineastas africanos e que reflete suas lutas internas e externas.
“‘Félicité’ é um exemplo da mulher que não se deixa abater facilmente, que enfrenta tudo e todos de cabeça erguida para atingir seus objetivos”, disse Gomis na coletiva, contando que a ideia inicial era fazer um filme sobre uma cantora de uma banda.
“Mas só comecei a trabalhar no roteiro um ano depois. Normalmente, preciso de um tempo para estabelecer ligações entre as ideias e um roteiro completo que faça sentido. Acho importante fazer com que os espectadores sintam o personagem, sintam o momento, enfim, sintam o filme”, explicou o diretor, de 44 anos que foi criado e está radicado na França.
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