Pode ser mera coincidência, mas as circunstâncias de mercado fazem com que estejam estreando ao mesmo tempo dois filmes de diferentes nacionalidades, feitos sobre a mesma personagem, em anos diversos. “Marguerite” (estreou no dia 23 de junho, veja programação completa no Guia Gazeta do Povo) é produção francesa de 2015, “Florence - Quem É Essa Mulher?” é anglo-americano, e deste ano. Estreia nesta quinta (7). Xavier Giannoli dirige o primeiro e Catherine Frot venceu o César, o Oscar francês, pelo papel. Stephen Frears dirige o segundo e você pode apostar que Meryl Streep, mais uma vez, será indicada para o próximo Oscar. Poderá até ganhar, mas quem merece o prêmio é Hugh Grant, no papel de sua vida. Ele nasceu para ser St. Clair Bayfield, o companheiro de Florence Foster Jenkins.
Os dois filmes são bons, mas o francês é melhor. Giannoli apropria-se da história da socialite norte-americana considerada a pior cantora lírica do mundo - uma espécie de Ed Wood de saias, e do bel canto - e tece uma fábula, muito particular, com ecos de “Cidadão Kane”, o clássico de Orson Welles, e “Crepúsculo dos Deuses”, a obra-prima de Billy Wilder, na qual o personagem-chave é o mordomo. É por meio dele que Giannoli reflete sobre o que é a arte, afinal.
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O mordomo nem existe na versão de Frears, que fica centrada no triângulo formado por Florence, o marido e o pianista gay que ele contrata para acompanhá-la. Giannoli investe no drama. Frears concentra-se mais nas possibilidades cômicas da história, mas tanto Meryl quanto ele resistem ao que seria mais fácil - o histrionismo, como fator de riso.
Giannoli e a arte - a morte da heroína
Em “Marguerite”, a heroína é uma construção do mordomo. Em Florence, é uma autoconstrução e tem de se impor aos que querem protegê-la de si mesma (o marido), impedindo-a de fazer o célebre concerto no Carnegie Hall.
Comparativamente, Frears é mais tradicional e se poderia mesmo dizer - convencional. Tudo converge para o concerto e, depois, para os esforços do marido para impedir que Florence leia as críticas demolidoras. Há mais investimento no quadro de saúde da protagonista e uma personagem secundária ganha relevo - é a mulher, vulgaríssima, do amante de ópera. Ela é capaz de morrer de rir de Florence, mas toma sua defesa numa cena destinada a resgatar a humanidade da personagem.
Esse encontro um dia teria de sair, Meryl Streep e Stephen Frears. Alguns de seus perfis recentes de mulher - “Chérri”, com Michelle Pfeiffer; “A Rainha”, com Helen Mirren; e “Senhora Henderson Apresenta” e “Philomena”, com Judi Dench - têm permitido ao diretor inglês oferecer grandes papéis a atrizes de talento comprovado. São todas heroínas que se afirmam num mundo adverso. Florence tem uma fala emocionante.
Quem foi Florence Foster Jenkins?
“Podem dizer que eu não tenho voz, mas não que não tentei. Eu cantei”. Florence Foster Jenkins entrou para a história por seu amor pela música. Cantava em círculos fechados, em Nova York, nos anos 1930 e 40 (e inspirou a mulher cantora de Charles Foster Kane). Milionária, fazia saraus regados a comes e bebes. O marido pagava a claque para que fosse aplaudida.
Seria uma farsa inócua, se Florence não tivesse o sonho de cantar no Carnegie Hall e dominar uma plateia de 3 mil pessoas. Ela também quis registrar sua voz, e fez gravações. O letreiro final informa que os registros de Florence são os mais requisitados da história do Carnegie Hall.
Qual é a surpresa em ver Meryl Streep exceder, mais uma vez? Meryl não é coloratura, mas canta bem, e muito afinada. Grande como é, entende essa mulher que abriu mão de tanta coisa por sua doença, mas não do seu amor pelo canto. Marguerite tem um colapso ao ouvir a própria voz. Florence distribui seus discos - é a crítica que a mata.
A surpresa de Florence é Hugh Grant. Como o marido, ele faz um ator shakespeariano canastrão. Pensa que está representando o bom marido, mas leva o papel a sério. Não representa coisa nenhuma. Ama de verdade aquela mulher. Hugh Grant faz essa passagem de forma muito digna. E não é que o galã, que ele não é mais, pode ser um verdadeiro ator?
Origens
Florence Foster nasceu em 1851 na cidade de Wilkes-Barre, na Pensilvânia. Ainda na infância, esboçou uma carreira como pianista, chegando a realizar pequenas turnês e a tocar na Casa Branca. Quando se formou na escola, quis viajar para a Europa para estudar música, mas seu pai a impediu. A importância da arte era tamanha na sua vida que ela rompeu com a família.
Casou-se, separou-se. Herdou, eventualmente, a fortuna da família. Foi importante patrona das artes, criou o Clube Verdi. E cantou, de tudo. Sempre muito mal. Contou, no entanto, com a ajuda do segundo marido, que fez tudo para evitar que a mulher descobrisse o quão ruim ela era - no que, até onde se sabe, teve sucesso.
O problema de Florence não era apenas a voz, terrível, mas também a afinação, sempre imprecisa, ou a completa falta de musicalidade. Ainda assim, ela é uma das figuras mais queridas dos amantes da ópera de todo o mundo.
Talvez essa atração se deva ao fato de que, no fundo, ela realizou o desejo recôndito de todo amante da ópera. Seu biógrafo, Daryll Bullock, vai em outra direção. Para ele, a paixão e entrega de suas apresentações fazem dela o exemplo mais bem acabado, no limite, do amor pela arte.
Será que ela teria parado se soubesse quanto era ruim? Será mesmo que ela não sabia? Seja como for, ela continuou sobre o palco. E, em um mundo como o da ópera, que vive à custa da expectativa de perfeição, seu canto terrível não deixa de ser uma quebra de paradigmas. Um legado, no final das contas, interessante.
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