Em “Jackie”, Natalie Portman retrata a primeira dama Jacqueline Kennedy nos dias imediatamente posteriores ao assassinato de John F. Kennedy. É um período coberto por luto, profunda ansiedade e um olhar afiado de interesse pelo legado de seu falecido marido, que ela é retratada a cimentar coreografando uma procissão funeral modelada na de Abraham Lincoln e concedendo uma entrevista em que deliberadamente compara a era Kennedy a Camelot.
Ao longo do filme, o roteirista Noah Oppenheim e o diretor Pablo Larrain pagam tributo à persona icônica de Jacqueline Kennedy, mesmo enquanto a questionam diretamente. Ela é retratada como uma figura de graça, gosto e força soberbas que a tornavam encantadora para milhões de americanos, mas também como uma mulher com um sagaz senso de história e simbolismo que era muito mais consciente, até mesmo calculista, do que sua recatada persona pública sugeria.
Com sua combinação de recriação histórica rigorosamente detalhada, tomadas de arquivo da vida real e fantasia puramente especulativa – para não mencionar a abrasadora performance física e psicológica de Portman – “Jackie” cria uma inquietante, quase alucinatória, mistura de fato e ficção. Mal acabou Larrain de transportar perfeitamente Portman para dentro do especial para a TV “Tour da Cara Branca” da senhora Kennedy, de 1962, confecciona uma montagem fantástica na qual ela cambaleia em uma névoa pesada por através da Ala Leste, bebendo vodca e tentando costurar um vestido de gala a partir dos remanescentes de uma vida que está rapidamente tornando-se um turvo e idealizado passado.
Fumo secreto
“Jackie”, em outras palavras, não é uma cinebiografia confortável. Em vez de reproduzir a reasseguradora imagem de requinte e glamour que viemos a associar a Jacqueline Kennedy, continuamente solapa essa versão consensual de uma das figuras públicas mais reservadas do século 20.
Alguns espectadores – especialmente baby boomers que cresceram durante a era Kennedy – já anunciaram que não estão interessados em ter sua visão de Jacqueline Kennedy arruinada pelo contramito de Larrain. Em uma recente exibição no cinema Avalon de Washington – batizado apropriadamente em homenagem a outro enclave arturiano – era possível ouvir um punhado de espectadores expressando choque e decepção ao serem confrontados com o fato de que a senhora Kennedy secretamente fumava.
Por mais inquietante que “Jackie” frequentemente seja, também é um retrato consolador de um tempo que, especialmente no atual período político, de alguma maneira parece digno de lendas idílicas, no fim das contas. Uma semana depois do assassinato do marido, enraivecida por historiadores e jornalistas que já estavam questionando suas realizações, a senhora Kennedy convoca um jornalista da revista Life para o complexo Kennedy no vilarejo de Hyannis Port para apresentar sua própria versão da narrativa oficial. Baseado no jornalista da vida real Theodore White, o repórter sem nome interpretado por Billy Crudup diligentemente grava o que a senhora Kennedy lhe dita, cedendo-lhe total controle editorial, o que inclui edições reveladoras (“Eu não fumo”, ela insiste, friamente) e a comparação com Camelot.
Política e cultura pop
Por mais contenciosa que a conversa deles por vezes seja, hoje nos parece curioso que uma vez tenha havido uma instituição jornalística tão confiada e de tamanho alcance quanto a Life que a senhora Kennedy pudesse usar para se conectar com seu público. Mesmo a transição para o governo Lyndon B. Johnson, ainda que certamente tensa, procede rapidamente, com admirável decoro e seriedade.
Mas plantadas juntamente com esse olhar nostálgico para o passado também estão as sementes do que estava por vir, sementes que os próprios Kennedy ajudaram a semear, deliberadamente ou não, e que agora vieram a florescer completamente. Enquanto figuras que ocuparam o limiar entre política e cultura pop, é possível se argumentar que pressagiaram um tempo, 50 anos depois, em que uma estrela de reality show poderia não apenas concorrer de maneira crível à presidência, mas vencer.
A inventividade da senhora Kennedy e seu hábil uso do mito de Camelot – que se firmou apesar de alguns lamentos céticos – parece relativamente benigna quando justaposta com as notícias de mentira e falsidades escancaradas promulgadas pelo governo entrante, da afirmação infundada do presidente eleito Donald Trump de que três milhões de pessoas votaram ilegalmente em novembro a um virulento boato envolvendo a pizzaria de Washington Comet Ping Pong que resultou em um homem armado invadindo o restaurante.
Verdade literal
Alarmistas podem sugerir que nossa disposição para sermos indulgentes com liberdades artísticas na grande tela nos habituou para as distorções mais consequenciais que agora afligem uma cultura “pós-fato”. Mas há uma diferença crucial entre liberdade criativa e mentira. Em “Jackie”, Larrain anuncia sua intenção de se afastar da verdade literal desde o começo do filme quando ouvimos os acordes estranhos e desorientadores da trilha sonora ousadamente abstrata de Mica Levi.
Ao longo do filme, por meio de som, imagem e a inquietante performance de Portman – frequentemente capturada em closes hiper-realistas claustrofóbicos – os cineastas deixam claro que seu objetivo não é enganar os espectadores com uma pseudo-“autenticidade” de documentário, mas provocar e desafiar nossas pressuposições mais estimadas sobre o que conta como autenticidade para começo de conversa. Similarmente, mesmo os mais contestados filmes baseados em fatos da história recente – “JFK”, “A Hora Mais Escura” e “Selma” entre eles – foram obviamente a impressão dos autores sobre os eventos em vez de dados brutos dos eventos em si, se não por outra razão, pelo fato de haver um claro e explícito enquadramento dos acontecimentos. Tudo a respeito da experiência de se ir ao cinema, do cheiro da pipoca ao tamanho da tela, nos condiciona a processar o que estamos vendo como entretenimento – e, às vezes, arte.
Pizzagate
No atual momento entramos em um espaço da mídia de massa no qual os “frames” mais cruciais desapareceram. Os fatos que cineastas usam como substrato para saltos de imaginação interpretativa agora estão sendo rotineiramente deformados (ou, mais comumente, desconsiderados) em serviço das artes negras da demagogia, com sérios riscos de vida ou morte. Quando o Washington Post entrevistou fornecedores da teoria de conspiração do Pizzagate esta semana, um deles despreocupadamente a comparou com o tipo de hobby praticado por aficionados por histórias de assassinato que tomam “JFK” como um evangelho; outro chamou sua investigação amadora do Pizzagate de “uma obra de arte”.
É claro que para realmente apreciar uma obra de arte são necessárias habilidades de raciocínio crítico – um valor encarnado em “Jackie” pela personagem que dá nome ao filme, mas um que tem sido deixado de lado por anos por políticos e comentaristas que fulminam filmes “historicamente imprecisos” enquanto deliberadamente ignoram a crescente importância da educação midiática, especialmente em escolas públicas. Como “Jackie” nos lembra, pode ter havido um tempo em que americanos confiavam na história consensual, em fatos acordados e noções compartilhadas da realidade objetiva para desempenhar nossos deveres de participação enquanto cidadãos informados. Hoje, somos mais propensos a escolher quais narrativas aceitar, como se estivéssemos decidindo qual filme queremos ver no cinema sexta-feira à noite.
Em ambas as equações, aquilo por que ansiamos não é tanto fidedignidade quanto lealdade a nossos pontos de vista auto-selecionados, uma troca facilmente acomodada por uma cultura midiática crescentemente balcanizada. Todos estamos no limiar de nos tornamos aquelas senhoritas em Avalon, relutantes em deixar qualquer um mexer nos nossos mitos. A questão é se as ilhas que construímos para nós mesmos podem prosperar simplesmente cultivando nossas ficções mais estimadas, enquanto fatos, como costumávamos conhecê-los, apodrecem no pé.
Tradução: Pedro de Castro
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