Durante a ditadura militar argentina, houve um período em que o regime endureceu o combate a qualquer tipo de oposição. As contas mais conservadoras estimam que pelo menos dez mil pessoas “desapareceram” — o número real pode atingir 30 mil.
O intervalo entre 1976 e 1983 — houve uma Copa do Mundo no meio de todo esse horror, com as bençãos da FIFA — se tornou conhecido como Guerra Suja. Nele se tornou prática comum dos generais argentinos os infames “voos da morte”, nos quais os opositores eram drogados e atirados de aviões em mar aberto.
Em ‘Kóblic’, filme argentino que está em cartaz nos cinemas curitibanos, Ricardo Darín faz o papel de um piloto de avião encarregado justamente de conduzir os tais voos da morte. E não demora para que sua consciência entre em conflito com o ganha-pão, mesmo que tecnicamente ele, individualmente, não esteja cometendo os assassinatos.
Este é um momento decisivo para Kóblic. Mas o que acontece no filme daí em diante é possível conferir no cinema.
O que interessa discutir aqui é que o mesmo dilema vivido pelo personagem de Darín foi experimentado por muitos de nós em vários pontos da história da humanidade. Muitos falharam miseravelmente. Por maldade, por covardia, por omissão, ou por acreditarem que poderiam amansar a culpa e a consciência simplesmente pelo fato de estar cumprindo ordens.
Toda ditadura é uma imoralidade. E comprovaram isso por meio de prisões arbitrárias, mutilações, torturas, assassinatos, genocídios e guerras.
Por isso, diante do mal absoluto, não há escolha possível. Sobre os Processos de Moscou, quando vários comunistas começaram a ser jogados na cadeia e fuzilados pelo governo Stálin, o dramaturgo Bertold Brecht disse, numa frase que até hoje é mal interpretada, que “quanto mais inocentes, mais mereciam ser fuzilados”. Brecht quis dizer que numa ditadura sanguinária como a de Stálin não há espaço para inocentes. O correto é sempre estar conspirando para derrubá-lo.
Talvez o exemplo mais emblemático do falso inocente seja o caso Eichmann. Em 1960, Adolf Eichmann foi capturado pelo serviço secreto israelense na mesma Argentina que 16 anos depois iniciaria seu próprio reinado de terror.
O nazista que se refugiara em nosso país vizinho ajudara a enviar milhares de judeus para as câmaras de gás dos campos de concentração. Mas nunca se enxergou como um assassino. “Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu. Nunca matei um ser humano”, disse, durante seu julgamento em Israel.
Eichmann tinha a firme convicção de que não era culpado. Quando chegar a nossa hora, tomaremos a decisão correta?