Como com tantas outras coisas na vida, os gênios malucos por trás de “South Park” estavam muito à frente de todos nós quando o assunto era Mel Gibson.
Em março de 2004, Trey Park e Matt Stone levaram ao ar o episódio “A Paixão do Judeu”. Nele, o corpulento e encrenqueiro Cartman, inspirado pelo filme “A Paixão de Cristo”, leva uma multidão inflamada a um ataque antissemita contra os judeus da cidade, enquanto Kyle e Kenny tentam conseguir um reembolso do ingresso do filme, que os dois detestaram. Quando os dois meninos chegam à mansão de Gibson, o ator fica ensandecido, exigindo que o torturem com práticas sadomasoquistas e atirando contra os dois, antes de chegar à cidade no Colorado que dá nome ao desenho, onde lambuza as portas das casas (e o rosto do próprio Cartman) com fezes.
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O episódio acertou na mosca as manias de Gibson – a saber, sua raiva incontrolável e seu antissemitismo – dois anos antes de o resto de nós termos a oportunidade de vê-las se manifestarem quando ele foi preso por dirigir alcoolizado. Essa não seria a última vez que veríamos Gibson na série, porém. Nos episódios de “Terra da Imaginação”, na 11ª temporada – que foram ao ar após Gibson ser preso – o ator é interrogado pelo exército, que visa consultar os figurões de Hollywood como parte dos seus esforços para impedir que terroristas consigam se infiltrar na imaginação dos EUA. Gibson é quem oferece um plano eficaz quando todos os outros diretores fracassam. Conclui, então, um dos generais: “Podem falar o que quiserem sobre o Mel Gibson, mas o **** manja de estrutura narrativa!”
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Nessas aparições, “South Park” foi bem-sucedido em sintetizar os dois lados de Mel Gibson. Ele é louco e excêntrico e possivelmente preconceituoso, mas também um grande diretor e um contador de histórias que beira o genial. Não há vergonha nenhuma em admitir que as duas coisas podem ser verdadeiras, não há contradição nenhuma em termos e nenhuma implicação de que você seja uma pessoa imoral por aceitar as duas ideias ao mesmo tempo.
Eu pensei nisso quando me sentei para ver “Herança de Sangue”, a primeira aparição de Gibson nas telonas desde 2012, quando ele estreou em “Plano de Fuga”. “Nas telonas”, porém, é só modo de dizer, na verdade, já que “Herança de Sangue” esteve em cartaz num número minúsculo de cinemas antes de chegar ao vídeo sob demanda – o que foi uma surpresa, talvez, dado o barulho que o filme fez em Cannes e a sua avaliação de 83% no Rotten Tomatoes.
Mas nada disso surpreende quando se leva em consideração o que se diz de Gibson atualmente. O diálogo gira menos em torno de seu trabalho no cinema e mais com o problema de se o público consegue deixar de lado as lembranças do ator e diretor xingando os judeus ou sendo acusado de ter batido na namorada sem contestar a ação.
Infelizmente, vem ressurgindo a crença de que a arte que consumimos e as vidas pessoais dos artistas que valorizamos de algum modo são um reflexo de nós mesmos, o que quase impossibilita que se discuta a arte de forma isolada
No caso de um filme mediano como “Herança de Sangue” – uma imitação de “Busca Implacável” que joga com os pontos fortes de Gibson como um astro de ação durão, mas que, fora isso, não tem muito mais a oferecer –, não se trata de uma grande perda. Para uma película de prestígio com aspirações ao Oscar como “Hacksaw Ridge”, porém, há mais coisas em jogo – e isso faz com que o diálogo provavelmente fique mais complicado.
Seria uma pena se os problemas pessoais de Gibson eclipsassem a história de Desmond Doss (Andrew Garfield), que salvou as vidas de 75 homens durante a Segunda Guerra Mundial no Pacífico, apesar do fato de que suas crenças religiosas o proibiam de portar armas. Não faço a menor ideia de se o filme é bom ou não, mas eu estaria mentindo se dissesse que não fico empolgado com a perspectiva de ver essa história contada pelo homem que dirigiu “Coração Valente” e “Apocalypto”.
Infelizmente, vem ressurgindo a crença de que a arte que consumimos e as vidas pessoais dos artistas que valorizamos de algum modo são um reflexo de nós mesmos, o que quase impossibilita que se discuta a arte de forma isolada.
Vejamos, por exemplo, o debate sobre Nate Parker e o seu “O Nascimento de uma Nação”. Para resumir, Parker foi acusado de estupro na faculdade e inocentado, enquanto seu amigo (e corroteirista do filme) Jean Celestin, foi considerado culpado de acusações de violência sexual derivadas da mesma situação (no caso de Celestin, ele recorreu da decisão, mas no fim não houve um segundo veredito). Os dois teriam supostamente assediado a vítima, que, segundo reportagens, cometeu suicídio em 2012. É um caso horrível, e o modo como Parker lidou com isso nas entrevistas ao longo dos últimos dias – uma tentativa aparente de desarmar a polêmica meses antes de o filme entrar em cartaz – foi tão desajeitada que ele parece não ter a menor noção.
Resta aceitar que o artista é um ser separado de suas conquistas artísticas, ensinar as crianças que não devem imitar homens como Parker e Gibson em suas vidas pessoas e, por fim, examinar “Hacksaw Ridge” e “O Nascimento de uma Nação” como realizações artísticas em vez de bolas de futebol ideológicas
O filme de Parker vem há muito sendo tratado menos como uma obra de arte e mais como uma arma nas guerras culturais: primeiro, ele foi visto como a grande esperança dos diretores negros após o predomínio branco no Oscar do ano passado, o que lhe rendeu um valor de compra recorde no festival de Sundance; agora ele é tremendamente “problemático”, salpicado de armadilhas para os que alegam defender a intersecionalidade. Essas posturas são igualmente redutoras, encolhendo “O Nascimento de uma Nação”, de uma obra de arte, a um totem ideológico. Ou o filme para em pé sozinho como obra de arte ou não para, e nada que Parker tenha feito há mais de 17 anos atrás, nem o suposto desequilíbrio racial no Oscar de 2015, podem mudar isso.
“Eu gostaria de ver, só uma única vez, um desses artigos argumentativos que tivesse a fortitude intestinal de sugerir pelo menos uma resposta concreta para a questão”, escreveu Glenn Kenny em 2015 em um debate sobre Woody Allen. Conforme entramos no começo da temporada dos prêmios – em que Gibson e Parker e todos os outros serão considerados problemáticos de um jeito ou de outro, com a qualidade dos seus filmes vindo em segundo lugar em relação ao conteúdo do seu caráter –, permitam-me que eu sugira uma resposta concreta à questão de Kenny: “nada”. Resta aceitar que o artista é um ser separado de suas conquistas artísticas, ensinar as crianças que não devem imitar homens como Parker e Gibson em suas vidas pessoas e, por fim, examinar “Hacksaw Ridge” e “O Nascimento de uma Nação” como realizações artísticas em vez de bolas de futebol ideológicas.
Aposto que todo mundo ficaria mais feliz se fizesse isso. E sei que o nosso diálogo cultural também ficaria mais saudável.
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