Talento precoce, genial e megalômano, Orson Welles (1915 1985) deixou sua marca na história do cinema com os filmes que fez entre eles, as obras-primas “Cidadão Kane” (1941) e “A Marca da Maldade” (1958) , os que sonhou em fazer e também os que deixou aos pedaços pelos caminhos tomados em sua conturbada trajetória. Alguns dos projetos abandonados pelo diretor norte-americano acabaram vindo parcialmente à luz graças ao esforço de admiradores abnegados que apresentaram, após a morte de Welles, títulos como “É Tudo Verdade”, documentário rodado no Brasil nos anos 1940, e “Dom Quixote”, sua caótica adaptação do clássico literário de Cervantes. Desses e de outros tantos títulos Welles teve de abrir mão em diferentes estágios de produção por conta de seu constante enfrentamento com produtores e da crônica falta de dinheiro. Essa foi sua sina após tornar-se um pária em Hollywood quando a fama de gênio deu lugar ao carimbo de indomável, encrenqueiro e gastador.
Pois outro filme perdido de Welles deve renascer em breve, em melhores condições técnicas e, ao que tudo indica, na versão bem próxima da planejada pelo cineasta. A Netflix anunciou na semana passada que irá bancar a restauração e a finalização de “The Other Side of the Wind”, longa que teve produção iniciada em 1970 e que foi interrompido em 1976. Com essa obra, Welles queria marcar seu retorno a Hollywood, após anos vagando pela Europa catando recursos para tocar seus projetos – missão que incluía reforçar o caixa trabalhando como ator em filmes B. Pensava Welles que essa seria sua triunfal volta por cima diante da indústria que o mastigou.
E a trama de “The Other Side of the Wind” trata justamente de um famoso diretor às voltas com sua derradeira obra. O papel principal foi entregue ao colega John Huston (1906 – 1987), assim como Welles um gigante atrás e à frente da câmera. A narrativa combina um falso documentário e um filme dentro do filme para contar a história de um veterano da era de ouro de Hollywood que, após anos de exílio na Europa, deseja retornar ao ofício com um trabalho que simbolize a revolução estética e temática que o cinema viveu nos anos em que esteve afastado do ofício.
Welles investiu tudo o que tinha no projeto (à época, reforçava o caixa dirigindo especiais de TV) e atraiu o interesse de um produtor espanhol e de investidores iranianos. Conseguiu completar as filmagens, mas empacou na finalização. Descobriu tarde demais que o intermediário espanhol lhe roubava a grana enviada pelos iranianos – estes acabaram assumindo o controle do material e queriam concluí-lo à revelia do diretor, que, obviamente, não aceitou. O imbróglio legal envolveu até a mudança de rumos no Irã com a revolução islâmica de 1979, e “The Other Side of the Wind”, com apenas 40 minutos da fita montada por Welles, acabou engavetado em Paris.
O fim de uma longa jornada
“The Other Side of the Wind” voltou a ser notícia em 2004, quando o cineasta e cinéfilo Peter Bogdanovich, que trabalhou como ator no filme, anunciou o desejo de finalizá-lo. Mas só 10 anos depois essa vontade começou a ganhou corpo. Bogdanovich, Frank Marshall (produtor poderoso em Hollywood e associado ao projeto já nos anos 1970) e o produtor polonês Filip Jan Rymsza adquiriram os direitos sobre o lendário material de Welles e o transferiram de Paris para Los Angeles. Em 2015, foi lançada uma campanha de financiamento coletivo para concluir “The Other Side of the Wind”, que arrecadou pouco mais de US$ 400 mil dos US$ 2 milhões buscados. Não foram divulgados os valores da negociação com a Netflix, responsável pelo posterior lançamento do longa em sua plataforma. O processo de restauração e montagem seguirá o roteiro original, as anotações e os depoimentos deixados por Welles.
“Não consigo acreditar. Depois de 40 anos, não vamos ser derrotados agora. Vamos concluir o filme”, declarou Marshall à imprensa.
Grandes filmes nunca vistos
A sina dos filmes que nunca chegaram ao público perpassa a história do cinema com episódios dramáticos e folclóricos. Estrelas e diretores do primeiro escalão estão no créditos de produções nunca realizadas, interrompidas no meio do caminho ou até mesmo concluídas e engavetadas por azares diversos: a morte de um elemento vital na engrenagem, falta de dinheiro ou pendengas legais, entre outros infortúnios. O brasileiro “Chatô: O Rei do Brasil”, por exemplo, por quase 20 anos integrou esse time, até finalmente ver a luz do projetor, em 2015. Veja alguns filmes cuja realização virou lenda.
Marilyn Monroe marcou os bastidores de muitos clássicos que estrelou levando à loucura diretores e colegas de elenco com seu comportamento instável. Os atrasos no set e o esquecimento de suas falas eram agravados pela dependência da diva de álcool e remédios. Marilyn morreu em 1962, aos 36 anos, quando começou a filmar a comédia “Something’s Got to Give”, com direção de George Cukor. Além das turbulências recorrentes – Cukor queria demiti-la –, Marilyn provocou escândalo filmando totalmente nua cenas em uma piscina. A produção foi cancelada. Apenas 37 minutos restaram, incluindo a famosa cena da piscina, que está no YouTube.
Stanley Kubrick pensava grande e era perfeccionista. Por isso, fez poucos e ótimos filmes. Quando morreu, em 1999, tinha entre seus projetos sonhados a superprodução “Napoleão”, que começou a planejar no final dos anos 1960 e para a qual preparou uma detalhada pré-produção em storyboards e desenhos de figurinos e cenários. Kubrick criou também uma enorme galeria de personagens, contatou grandes astros e vislumbrou batalhas épicas com 30 mil figurantes. “Napoleão” tornou-se grande demais até para ele, que aplicaria parte de seus conceitos para o filme em “Barry Lyndon” (1975). Assim como fez com “A.I. – Inteligência Artificial” (2001), transformando em filme uma ideia de Kubrick, Steven Spielberg já anunciou o projeto de adaptar Napoleão em uma série de TV para a HBO.
O diretor Terry Gilliam arrasta por quase 20 anos a realização deste projeto com fama de maldito: uma trama fantástica inspirada no universo do clássico “Dom Quixote”, de Cervantes. Em 2000, a primeira tentativa se tornou caótica com orçamento se mostrando insuficiente, intempéries desabando sobre o set na Espanha e um problema de saúde afastando o ator francês Jean Rochefort, que vivia Quixote – Johnny Depp também estava no elenco, como um diretor de comerciais que viaja no tempo dos dias de hoje à La Mancha do século 17, onde encontra o cavaleiro errante. O documentário “Perdido em La Mancha” (2002) lembra esse episódio. Ao longo dos anos, Gilliam anunciou e cancelou a retomada do projeto em diferentes ocasiões e com diferentes elencos. Mas eis que o obstinado diretor deu início a mais uma tentativa: começou a rodá-lo no começo de março, na surdina, com Jonathan Pryce de Quixote e Adam Driver como o viajante no tempo.
Grande nome do cinema francês pré-Nouvelle Vague, consagrado por filmes como “O Salário do Medo” (1953), Henri-Georges Clouzot era famoso também pelo temperamento colérico. A realização de “O Inferno”, filme estrelado por Romy Schneider, transformou-se na casa do demo para atores e equipe. O perfeccionismo de Clouzot para erguer uma obra-prima que traduzisse em imagens a distorção da mente de um homem consumido pelo ciúme levou a uma sucessão de problemas: gastos excessivos, prazos estourados, brigas no set, culminado com Reggiani abandonando o barco e Clouzot sofrendo um infarto. Em 1994, Claude Chabrol retomou o roteiro do projeto abandonado em “Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo”. Essa história está contada no documentário “O Inferno de Henri-George Clouzot” (2009).
Bem antes de David Lynch apresentar, em 1984, sua decepcionante adaptação do cultuado romance de ficção científica “Duna”, lançado por Frank Herbert em 1965, o diretor chileno Alejandro Jodorowsky deu início a uma empreitada que se tornaria lendária, tema do documentário “Duna de Jodorowsky” (2014). No começo dos anos 1970, Jodorowsky despontava no cinema experimental. E arregimentou para seu ambicioso projeto os artistas gráficos Jean “Moebius” Giraud e H.R. Giger. No elenco, nomes como Salvador Dalí, Orson Welles, Mick Jagger e Gloria Swanson, com o Pink Floyd assinando a trilha sonora original. Com cenários e figurinos concebidos, Jodorowsky foi atrás de financiamento. Queria fazer um filme com 15 horas de duração e não abria mão do controle criativo. Não lhe deram pelota, e seu Duna virou pó. Muitos dos inovadores conceitos visuais, porém, “inspiraram” filmes como “Guerra nas Estrelas”, “Alien – O Oitavo Passageiro” e “Blade Runner”.
Ator que despontou como astro juvenil nos 1980, em filmes como “Conta Comigo”, River Phoenix (irmão mais velho de Joaquim Phoenix) morreu de overdose aos 23 anos, em 1993. Filmava à época “Dark Blood”, que tinha cerca de 80% de sua participação concluída. Sem seu ator principal, o diretor holandês George Sluizer cancelou a produção, e a companhia de seguros tomou posse do material. Após salvar o filme da destruição, Sluizer decidiu concluí-lo, recorrendo à narração e imagens fixas para preencher lacunas na narrativa. Desde 2012, “Dark Blood” vem sendo exibido em festivais, com elogios de público e crítica – disputas legais impedem o lançamento comercial.
Somente em 2025 poderá se conhecer o filme que Jerry Lewis dirigiu e estrelou em 1972 e jamais lançou. Em tradução literal, “O Dia em que o Palhaço Chorou” é um drama ambientado em um campo de concentração nazista durante a II Guerra Mundial. O comediante vive um palhaço encarregado da terrível missão de entreter crianças judias conduzidas para execução nas câmaras de gás. Lewis, 91 anos, guardou por anos a única cópia existente do filme. Em 2015, entregou sua guarda, junto com todo seu acervo, à Biblioteca do Congresso americano, em Washington, sob ordem expressa de não ser exibida até 2025. Lewis já declarou que contrapor a figura icônica do humor a crimes tão tenebrosos poderia resultar em um filme maravilhoso. Após realizá-lo, porém, disse que foi tomado por um sentimento de vergonha e ficou feliz por impedir o lançamento em tempo.
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