Em pelo menos três décadas após o lançamento de “O Último Tango em Paris” (1972), a cena da ‘manteiga’, como ficou conhecida uma das sequências de sexo entre o veterano Marlon Brando e a jovem atriz Maria Schneider, figurou entre as mais quentes do cinema, embora se tratasse claramente de um abuso. A manteiga, utilizada como lubrificante pelo personagem de Brando, rendeu estrofe até para esquete musical de “Os Trapalhões”, quase uma década depois. Para Maria, então com 19 anos, aquilo não foi sexy, tampouco engraçado. Pela legislação atual brasileira, o ato teria grandes chances de ser caracterizado como estupro.
O caso voltou à tona há poucos dias, depois que um vídeo de 2013 em que Bernardo Bertolucci, o diretor, admite que não contou à atriz o que aconteceria naquele dia. O trecho foi traduzido para o espanhol por conta do mês de combate à violência contra a mulher e divulgado com estardalhaço pela revista Elle americana. “Eu e Marlon tivemos a ideia da cena na manhã da filmagem da cena”, contou, durante evento na França naquele ano. Sob orientação do italiano, o ator atacou a colega, 29 anos mais jovem, e usou o tal lubrificante improvisado.
“Muito embora o que Marlon estivesse fazendo não fosse real, eu estava chorando de verdade. Eu me senti humilhada e para ser honesta, eu me senti estuprada, por Marlon e Bertolucci. Depois da cena, Marlon não me consolou ou se desculpou. Graças a Deus foi só um take”
“Deveria ter chamado meu agente ou meu advogado para ir ao set porque você não pode forçar alguém a fazer algo que não está no script, mas, na época, eu não sabia disso”, contou a atriz francesa em entrevista ao jornal britânico Daily Mail em 2007, quatro anos antes de morrer, vítima de câncer.
Mas foi crime mesmo?
Não houve de fato sexo durante o filme, mas Bertolucci queria uma reação genuína da atriz e produziu uma situação de violência bastante realista. “Muito embora o que Marlon estivesse fazendo não fosse real, eu estava chorando de verdade. Eu me senti humilhada e para ser honesta, eu me senti estuprada, por Marlon e Bertolucci. Depois da cena, Marlon não me consolou ou se desculpou. Graças a Deus foi só um take”, contou Maria na mesma entrevista de 2007.
Para muitos, paira a dúvida. Se não houve penetração, como o ato seria considerado estupro? É que no Brasil, por exemplo, a descrição do tipo penal do estupro (artigo 213) é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outo ato libidinoso”.
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Leia a matéria completaEmbora tenha seguido carreira e feito mais de três dezenas de filmes, Maria foi até o fim da vida estigmatizada pelo papel. Afirmou ter ficado amiga de Brando até a morte dele, mas jamais falou com Bertolucci novamente.
Por conta da polêmica, nesta segunda (5), o diretor liberou comunicado informando que Maria não sabia apenas do detalhe da manteiga e que foi informada sim da cena de sexo não consentido.
Veja a entrevista com o diretor Bernardo Bertolucci
Reação
Embora Maria Schneider tenha contado sua história outras vezes antes, foi preciso que a confissão de Bertolucci, algo que também não era novidade, fosse resgatada para que causasse escândalo na opinião pública. Foi o que lamentou a atriz Anna Kendrick em resposta a um horrorizado Chris Evans, que compartilhou a notícia no Twitter. “Eu nunca soube disso. Eles deveriam estar na cadeia”, disse o intérprete do Capitão América. As atrizes Evan Rachel Woods, Lena Dunham e Jessica Chastain também se pronunciaram.
“O nosso trabalho, no cinema, é fingir de uma maneira tão verossímil que as pessoas acreditem em um sofrimento, por exemplo. Isso é ser ator. Eu não acredito na necessidade de um método que humilhe um ator para extrair um sentimento”
“É uma atitude antiética e desumana, mas também acho que quem deveria falar sobre esse tema são as mulheres. São elas que sofrem esse tipo de abuso constantemente”, afirma o diretor curitibano Aly Muritiba. “Se o meio cinematográfico é macho e machista ainda hoje em dia, imagine como era nos anos 1970? É uma atitude desprezível, mas ao mesmo tempo é uma atitude datada”, completou.
Para a diretora carioca Julia Rezende, o episódio é inadmissível tanto do prisma da violência de gênero como do modo de fazer cinema. “O nosso trabalho, no cinema, é fingir de uma maneira tão verossímil que as pessoas acreditem em um sofrimento, por exemplo. Isso é ser ator. Eu não acredito na necessidade de um método que humilhe um ator para extrair um sentimento”, lamenta.
Bertolucci admitiu que foi ‘horrível’ com Maria, se desculpou por tê-la feito passar por isso, mas que não se arrependia do realismo que seu método violento conquistou para o filme. “Para conseguir algo é preciso ser completamente livre”. Pena que a sua custou a liberdade da vítima.
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