limitação
Ainda que veja tanto com clareza, Miranda se recusa a reconhecer a dinâmica dentro da qual está aprisionada. Fechou-se em uma vida tão disciplinada e limitada quanto uma saia lápis colada à pele.
Um dos maiores privilégios de retornar a um trabalho que você viu quando jovem, ou ao menos mais jovem, é a maneira como uma história pode mudar ao longo do tempo.
Isto vale para “O Diabo Veste Prada”, a adaptação de David Frankel do romance de Lauren Weisberger, um relato levemente disfarçado do tempo que Weisberger passou trabalhando para a editora da Vogue Anna Wintour, que foi lançado há dez anos no último dia 30 de junho (no Brasil, estreou no dia 22 de setembro de 2006) . O filme acompanha uma jovem e ambiciosa jornalista, Andy Sachs (Anne Hathaway), conforme ela se encontra trabalhando para Miranda Priestly (Meryl Streep), a imperiosa editora da Runway.
Com 21 anos, recém-saída da universidade e fazendo checagem de dados para uma revista de política, estava feliz por ter evitado o destino de Andy. Mas, com uma década de experiência, cinco desses passados como crítica, acho Miranda Priestly não apenas muito mais simpática; parece que ela inaugurou todo um gênero de anti-heroínas.
É verdade absoluta que Miranda Priestly parece uma chefe terrível. Faz jogos com suas assistentes, tem uma visão estreita de beleza física que limita sua criatividade e ousadia, não se importa se as pessoas se esgotam, abusa da lealdade de seus colegas de longa data para seu próprio ganho, é uma má comunicadora, e usa sua própria excelência para intimidar qualquer outra pessoa.
Ela é tão perpetuamente cruel com as pessoas ao seu redor porque elas não parecem enxergar seu próprio potencial da mesma maneira como ela enxerga
Mas reassistindo à “O Diabo Veste Prada”, fui atingida pela ideia que motiva toda farpa que Miranda atira contra todos em seu caminho. Ela é tão perpetuamente cruel com as pessoas ao seu redor porque elas não parecem enxergar seu próprio potencial da mesma maneira como ela enxerga. Se ela se desaponta com eles, é porque acredita que são capazes de mais, não porque espera que falhem. Ela os esmaga porque frequentemente ela própria se sente esmagada.
E Miranda é particularmente dura com Andy porque tem expectativas maiores em relação a ela.
“Sempre contrato a mesma garota. Com estilo. Magra, é claro. Venera a revista. Mas frequentemente elas se revelam... decepcionantes. E burras. Então você, com seu currículo impressionante e seu grande discurso sobre sua pretensa ética do trabalho, pensei que seria diferente”, Miranda diz a Andy em um discurso, no meio do filme, depois de Andy ter a deixado na mão mais uma vez. “Disse a mim mesma, vá em frente, arrisque, contrate a garota esperta e gorda. Tinha esperanças. Meu deus. Eu vivo de esperanças. De qualquer forma, você acabou me desapontando mais do que elas. Mais do que qualquer uma das outras garotas tolinhas.”
Papel ambíguo
Se Miranda fosse um homem, ela seria o herói ao final de “O Diabo Veste Prada”, o personagem que vê grandeza dentro de Andy e a empurra a realizá-la. Em vez disso, seu papel no filme é mais ambíguo. Ela se torna a pessoa contra quem Andy se define, a imagem de tudo que Andy não quer ser, mas que mesmo assim dá a Andy a carta de recomendação que a ajuda a perseguir uma carreira como repórter.
Personagens como Walter White de “Breaking Bad” (Bryan Cranston) e o herói principal de “Os Sopranos” (James Gandolfini) são adorados mesmo quando cometem assassinato, mentem para suas famílias a pretexto de sustentá-las e até mesmo borram os limites do consentimento sexual.
Escrevi ao longo dos anos um sem número de artigos sobre a dinâmica de gênero da Idade de Ouro da televisão, nas quais homens, mesmo criminosos, são recompensados por demonstrarem atributos masculinos como força e agressividade, enquanto mulheres são punidas por demonstrarem emoções e interesse no ambiente doméstico e em romance.
Personagens como Walter White de “Breaking Bad” (Bryan Cranston) e o herói principal de “Os Sopranos” (James Gandolfini) são adorados mesmo quando cometem assassinato, mentem para suas famílias a pretexto de sustentá-las e até mesmo borram os limites do consentimento sexual. Em contraste, personagens como Hannah Horvath (Lena Dunham), a heroína obcecada consigo mesma de “Girls” que inflige mais dano a si mesma do que a qualquer outra pessoa, são duramente criticadas como apenas irritantes.
Ataque pessoal
Mas, conforme a televisão em particular e a cultura pop em geral têm evoluído, há outra armadilha para mulheres ficcionais, uma que Miranda incorpora perfeitamente. Ela tenta se comportar como anti-heróis ficcionais se comportam, investindo em competência, altas expectativas e escandalosas demonstrações de excelência. Faz seu melhor para suprimir emoções incômodas e mesmo embaraçosas sobre seu casamento problemático ou uma rivalidade profissional.
Ao fazer o primeiro, contudo, ela é vista como difícil tanto quanto excepcional. E ao fazer o segundo, Miranda criou uma situação perigosa para si mesma: ela é tão impenetrável que qualquer emoção publicamente expressada ou qualquer fracasso na vida pessoal se torna uma via para atacá-la, para tentar expor o eu vulnerável que presumivelmente se esconde por trás da superfície afiada como navalha.
Miranda não é nenhuma Lady Macbeth, clamando aos espíritos para dessexualizarem-na; conforme ela explica em um solilóquio memorável, ela abraça completamente seu papel no ápice de uma indústria com um poder tremendo para definir o que mulheres compram e vestem. Mas ela ilustra os dilemas que anti-heroínas, de Cersei Lannister (Lena Headey) a Olivia Pope (Kerry Washington), viriam a enfrentar em dramas subsequentes como “Game of Thrones” e “Scandal”, respectivamente.
Mas mulheres que tentam ocupar papeis tradicionalmente ocupados por homens, seja um grande movimentador de economia, conselheiro do rei ou do presidente, e agir com a mesma autoridade e exigência por excelência tradicionalmente reservadas a homens encontram um novo perigo. O desejo de derrubar uma mulher poderosa por meio de sua vida pessoal, seja o divórcio de Miranda, o incesto de Cersei ou a participação de Olivia em um adultério, não se trata apenas de removê-la de sua posição. Trata-se de demonstrar que, enquanto uma criatura sentimental, ela nunca pertenceu a essa posição para começo de conversa.
“Você pode ver além do que as pessoas querem e precisam e escolher por si mesma”, Miranda diz a Andy quase no final de “O Diabo Veste Prada”. “Todo mundo quer isso. Todo mundo quer ser nós.”
Mas, ainda que veja tanto do mundo com tanta clareza, Miranda está se esquecendo de algo ou ao menos se recusando a reconhecer a dinâmica dentro da qual está aprisionada. Ao conquistar o direito de escolher por todos os demais, ela se fechou em uma vida tão disciplinada e limitada quanto uma saia lápis colada à pele.
PT apresenta novo “PL da Censura” para regular redes após crescimento da direita nas urnas
Janjapalooza terá apoio de estatais e “cachês simbólicos” devem somar R$ 900 mil
Não há inflação baixa sem controle de gastos: Banco Central repete alerta a Lula
De 6×1 a 4×3: PEC da redução de jornada é populista e pode ser “armadilha” para o emprego
Deixe sua opinião