“Paterson”, de Jim Jarmusch, é sobre um poeta que trabalha como motorista de ônibus em Paterson, no estado de Nova Jersey.| Foto: Mary Cybulski/Divulgação

A Mostra é um outro mundo.

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Você precisa usar uma lógica diferente dentro dele e dividir os dias em filmes, não em horas, organizando tudo ao redor de sessões de cinema– idas ao banheiro, refeições, horas de sono e não muito mais que isso. Porque não dá para perder tempo.

É exatamente essa a característica mais valiosa da Mostra, esse senso de urgência.

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A central montada no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, vende com antecedência pacotes de ingressos e credenciais (no dia das sessões, só nas bilheterias dos cinemas) e eles funcionam como vistos para entrar nesse território feito de filmes, 322 deles, com 1.213 sessões em 35 lugares diferentes, de salas de cinema ao vão do Masp e ao Parque Ibirapuera.

Como uma espécie de evento astronômico, a Mostra é um mundo acessível apenas por 14 dias, entre o final de outubro e o início de novembro. Neste ano, a 40.ª edição começa na quinta-feira (20) e termina no Dia de Finados.

Se você gosta de cinema ou é dono de um temperamento aventureiro, deveria ir à Mostra ao menos uma vez na vida.

Você, no sofá

A questão é que hoje ninguém mais deixa o sofá da sala para ver coisa nenhuma. Tudo é streaming, YouTube e tevê a cabo. Ou ainda, entre os piratas destemidos, baixados ilegalmente na internet.

A.O. Scott, crítico de cinema do jornal “The New York Times”, num texto defendendo o vigor do cinema – parece que ele precisa ser defendido de tempos em tempos –, argumenta que o cinema, mais do que um programa em que se assiste a alguma coisa, é também um destino, um rumo, um lugar para onde se vai.

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A gente vê Netflix, vira brócolis emendando episódios de séries um no outro, mas, para ir ao cinema, é necessário se esforçar: tirar o pijama, vestir uma roupa, virar a chave na porta e de fato sair de casa.

A qualidade rara da Mostra

Scott falava do cinema comercial, daquele que você pega quando vai ao shopping. A Mostra, além de ser cinema, além de ser um lugar aonde se vai, tem outra qualidade, mais rara. Ela exibe filmes que você nunca mais vai ver em lugar nenhum (falo isso por experiência própria), seja na tevê a cabo, no streaming ou em torrent. Claro que existem exceções e que vários dos melhores conseguem ser distribuídos, ainda que em circuitos restritos – nesse esquema, Curitiba fica de fora com frequência.

Isabelle Huppert em cena de “Elle”, de Paul Verhoeven, representante da França no Oscar 2017. 

Porém, existe uma numerosa maioria que não tem o mesmo destino. Alguns não são tão bons, mas têm valor. (Foi o cineasta Jean-Luc Godard que disse preferir “um filme búlgaro ruim a um filme americano ruim” – ele curtia diversidade.) Outros são péssimos e é melhor que desapareçam, mas existem filmes bons, decentes mesmo, que funcionam como exemplos valiosos do cinema feito em lugares bizarros como a Mauritânia ou alguma daquelas ilhazinhas que terminam em “nésias”, no Pacífico.

Essa experiência de ver um filme estranho de um lugar remoto é parte do encanto da Mostra. Encontrar um desses exemplares e descobrir que, de repente, você pode até acabar gostando de um drama rodado no Curdistão (Iraque, na verdade), acaba sendo algo marcante.

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“Na Mostra, você tem que se aventurar. Essa é a graça”, diz Renata de Almeida, diretora do evento paulista, em entrevista por telefone na segunda-feira de manhã (17).

Qual é a diferença entre um espectador de cinema “normal” e um que percorre a Mostra? Renata diz que eles são parecidos. Porém, uma coisa fundamental separa os dois grupos. “O espectador da Mostra tem mais disposição para o risco”, diz ela.

Por risco, entenda entrar numa sala escura com pouca informação sobre o que vai acontecer ali, nada de atores ou diretores famosos e esqueça a língua inglesa como referência.

“O Exorcista” (1973), de William Friedkin: cineasta será homenageado pela Mostra e virá ao Brasil. 

O risco é, por exemplo, passar quase uma hora vendo um filme preto e branco que mostra uma rocha e nada mais. Durante 50 minutos. Um bloco de pedra. (Aconteceu comigo.) Ou acabar diante de um filme francês em que a personagem adolescente passa parte da história com os pelos pubianos sendo queimados ao ar livre. Não me pergunte por quê. Eu não sei.

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Outra diferença elementar de um espectador da Mostra, também citada por Renata, é que ele não mexe no celular durante a projeção. Ele pode até comer vendo o filme, mas não fica no Whatsapp, no Twitter, no Snapchat e no Facebook. Fazer refeições dentro da sala de cinema é uma ousadia necessária para ganhar tempo.

Deserto e oceano

Em 2016, a Mostra faz 40 anos. “Quando começou a gente vivia a ditadura e havia uma escassez de filmes. Era um deserto”, diz Renata. “Hoje é o oposto. Há um excesso de propostas. Um oceano.”

Neste ano, a Mostra teve 1.400 filmes inscritos. Um grupo de dez pessoas fez a seleção dos 322 a serem exibidos, vendo os filmes e escrevendo relatórios a respeito deles. Renata, uma dos dez, fez também a curadoria, escolhendo o rumo que a Mostra tomaria.

Ela arremata a comparação entre épocas: “[Nos anos de chumbo,] as pessoas se sentiam perdidas no deserto e, agora, podem se sentir perdidas no oceano também.”

A Mostra é terra firme.

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