Pode existir relação entre a história de Scheherazade e a atual crise econômica e social em Portugal? O cineasta Miguel Gomes mostra que isso é possível em “As Mil e uma Noites”, muito aplaudido no fim de semana passado, durante o Festival de Nova York.
Tendo como base a estrutura narrativa do clássico conto persa, o novo filme de Gomes é um épico contado em três atos: “O Inquieto”, “O Desolado” e “O Encantado”, com duração total de 6 horas e 21 minutos.
Trabalhando um ano inteiro com uma equipe de jornalistas que enviavam notícias de todo o país durante o recente mergulho de Portugal na “política de austeridade”, Gomes transforma eventos reais numa fábula, e a expressa através da voz de Scheherazade (Crista Alfaiate), a mítica personagem do livro “As Mil e uma Noites”.
As histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus”, como são descritos no filme os governantes de Portugal, servem de substituição aos contos narrados por Scheherazade para entreter o cruel rei Shariar e preservar sua vida.
O primeiro ato mistura material documental sobre desemprego e eleições com visões surrealistas de galos cantantes e baleias explosivas. O segundo é contado como um drama brechtiano num julgamento ao ar livre no qual os testemunhos ficam cada vez mais absurdos. O terceiro, excêntrico e encantador, mistura a história de Scheherazade com a crônica documental de um caçador de pássaros na área de Lisboa.
Dividido em atos sustentados por tons distintos, o épico é uma sátira política, que além de portuguesa, é também europeia.
Nova onda
Miguel Gomes é o líder de uma nova onda cinematográfica portuguesa. Comparada com a nouvelle vague francesa, há muito não se via um cinema português tão complexo e, sobretudo, tão criativo.
Como explica Gomes, cada um dos três contos traz surpresas e digressões, ancorados nas imaginações de Scheherazade e adaptados aos recentes eventos da vida real em Portugal.
“Havia três jornalistas que recolhiam informações sobre tipos variados de acontecimentos em Portugal e informavam ao “comitê central”, um grupo que é constituído pela equipe nuclear do filme. Essa equipe deveria preparar o roteiro, que poderia surgir da evocação de determinada história ou determinado acontecimento real, transformando-o numa ficção. Estávamos ancorados na realidade do que acontecia no país”, conta o diretor, que tem feito questão de esclarecer que o filme não é uma adaptação das “Mil e uma Noites”.
“Desde minha adolescência tenho uma relação forte com esse livro, mas a ideia era criar um dispositivo cinematográfico que se aproximasse da sua narrativa. Queria construir algo que fosse tão rico quanto ‘As Mil e Uma Noites’, com todas as suas bifurcações ficcionais e que, ao mesmo tempo, fosse uma radiografia do estado de alma de um país, durante o período de um ano. Por isso definimos como baliza temporal o período entre agosto de 2013 e agosto de 2014, quando Portugal viveu – e continua a viver – uma grave crise econômica e social”, diz Gomes, que tem uma explicação para a titulação dos atos.
“O primeiro chama-se ‘Inquieto’ porque há motivos de inquietação que vão surgindo às personagens em várias histórias. O segundo, ‘O Desolado’, porque já passou a inquietude. Há qualquer coisa que parece estar perdida e partida sem possibilidade de reerguer. Por fim, ‘O Encantado’ é a memória de cada um dos personagens e traz a lembrança de outra cidade. A maior parte desses personagens nasceu em bairros de lata [favelas] e foram realojados em ‘bairros sociais’, que não gostam e sentem saudades dos locais em que nasceram”.
O diretor discorda que “As Mil e Uma Noites” seja um filme militante com a intenção de impor valores aos espectadores. ”Eu quis principalmente evidenciar a situação atual de Portugal. Ela é multifacetada e eu gostaria que a extensão deste filme traduzisse a percepção do que é a experiência de viver em comunidade neste país em crise”, afirma.
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