Há uma cena de batismo em “Silêncio” que é reveladora. Ambientado no Japão do século 17, durante um período de perseguição de cristãos pelo shogunato vigente, o filme gira em torno de um missionário português católico, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield), que entrou como clandestino no país, onde foi acolhido por camponeses convertidos. Quando chamado para batizar o bebê de um casal cristão, a mãe se vira para ele e pergunta se o bebê está agora “no paraíso”.
O jesuíta a corrige, com um sorriso que demonstra não condescendência, mas tolerância e paciência com sua ingenuidade teológica (uma prova da divisão cultural que atravessa, como um abismo profundo, todo esse filme longo, filosoficamente espinhoso e às vezes violento). O paraíso é a recompensa que Deus dá aos fiéis na pós-vida.
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Para muitos dos outros cristãos clandestinos como aquela jovem mãe – forçados a praticar em segredo a sua versão de uma religião importada –, essa pós-vida virá mais cedo do que o esperado. Como fica claro com essa adaptação de Martin Scorsese, ao mesmo tempo ambiciosa e frustrante, do livro de 1966 de Shusaku Endo (publiado no Brasil pela Planeta), ameaças de tortura e morte aguardavam os cristãos que se recusassem a renunciar publicamente à sua fé, pisando na imagem de Jesus.
A tensão entre a apostasia e o martírio – não quando a própria morte está em jogo, mas quando as ações do indivíduo determinam os destinos dos outros – é o gume afiado de “Silêncio”, cujo título se refere à incomunicabilidade de Deus diante das preces e do sofrimento humano.
Estranhamente, Deus acaba falando com Rodrigues, de forma bastante literal, ainda que fique em aberto se a voz vem da divindade em si ou da cabeça do próprio Rodrigues.
Quando Deus aparece e conversa com o jesuíta, ele se vê confrontado por um dilema que rende ao filme uma urgência que ele tem dificuldade para manter.
O dilema não tem nada a ver com a decisão de Rodrigues de entregar a própria vida, mas com a relutância em apostasiar, mesmo diante da morte dos outros. Num esforço para forçar o padre a renunciar à sua fé, um samurai inquisidor coloca uma fila de vários cristãos japoneses sobre o fosso, só para pressionar Rodrigues. Se o padre renunciar à sua fé, os camponeses vivem. Senão, eles morrem.
Teste
Qual dessas atitudes, pergunta o filme, é a mais cristã: manter a fé com firmeza, mesmo que signifique a morte de outras pessoas?; ou renunciar publicamente a Jesus, mantendo-se verdadeiro a ele no coração? Como diz o padre Ferreira (Liam Neeson): “Algumas coisas são mais importantes do que o juízo da Igreja”. No fim, a moral da história é cheia de amargura e de nuance.
O antigo mentor jesuíta de Rodrigues, o padre Ferreira (Liam Neeson), missionário que havia apostasiado anos antes e desde então vive como um estudioso japonês secular, aparece na última hora para convencer seu jovem protegido a renunciar à fé. Mas são todas essas vidas que estão por um fio, e não as palavras de Ferreira, o que fornece a força dramática a um filme tão cheio de falatório.
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