Há filmes que arrebatam pelo poder que têm em nos descolar do mundo momentaneamente, e outros porque nos fazem simplesmente entendê-lo melhor. “Spotlight: Segredos Revelados” (veja trailer abaixo) é um destes.
O filme de Tom McCarthy, em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (7), relembra um caso real de investigação jornalística acontecido em Boston, em 2001, que acabou por denunciar 249 padres da cidade – de um total de 1.500 – por abuso sexual de crianças e adolescentes. O tema é árduo. O filme é seco. E a experiência em assisti-lo é magnífica, por inúmeros fatores.
Desde a década de 1960 havia rumores – e algumas notícias no The Boston Globe – sobre a molestação de crianças por padres pedófilos. Notas e matérias curtas davam conta do assunto, numa cidade predominantemente católica. Eis que Marty Baron (Liev Schreiber), novo diretor de redação, chega ao periódico e destaca uma equipe de jornalistas investigativos – conhecida como Spotlight – para concentrar atenção no caso. Ele é judeu e vem de outra cidade para substituir um jornalista veterano que acabou de se aposentar. Uma coruja na escuridão.
“’Spotlight’ mostra o valor do jornalismo investigativo”, diz repórter do “Boston Globe”
A frase mais famosa de “Todos os Homens do Presidente”, filme de Alan J. Pakula de 1976, serviu durante anos como um mantra para o jornalismo. “Siga o dinheiro”, disse uma fonte ao repórter Bob Woodward (Robert Redford) durante a apuração do caso Watergate - como ficou conhecido o escândalo que levou à renúncia do presidente americano Richard Nixon.
Leia a matéria completaRobby (Michael Keaton), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Matt Carroll (Brian d’Arcy James) e Michael Rezendes (Mark Ruffalo, único, na pele de um jornalista aéreo e impulsivo) avançam nas investigações que renderam ao jornal um prêmio Pulitzer, o Oscar do jornalismo. Com montagem excepcional, a partir deste momento “Spotlight” vira uma espécie de thriller semidocumental. O trabalho avança e os repórteres descobrem as primeiras vítimas dos abusos – atores secundários igualmente brilhantes. A maioria é frágil psicologicamente e tem família desestruturada. Muitas se mataram. Um grupo de apoio às vítimas vivas as chama de “sobreviventes”.
Uma delas lembra que se sentiu à vontade, como nunca na vida, para contar ao padre que era gay. Outra achava impossível denunciar o que vivia, pois era como “ir contra a palavra de Deus”. Não era meramente um abuso físico, portanto, mas também espiritual. Aliás, vale a pena ressaltar a edição primorosa dos depoimentos, realistas, incômodos e distantes de qualquer sentimentalismo.
A equipe Spotlight, assim, descobre um padrão de ação dos padres suspeitos. Confirma que foram afastados de suas paróquias por motivos diversos, às vezes banais, e que o advogado Jim Sullivan (Jamey Sheridan) os acobertava, cobrando U$ 20 mil dólares da Igreja por processo para não tornar os casos públicos. Era uma pequena indústria do abuso.
A investigação se agiganta e o diretor de redação ordena que a equipe cavouque mais, para chegar ao núcleo daquele “sistema” que, descobre-se depois, tinha a conivência não só da própria Igreja Católica, mas do fórum da cidade, do poder judiciário, da polícia e muito provavelmente do ex-diretor de redação do Boston Globe – que chegou a receber denúncias e documentos, mas fez vistas grossas.
O filme é exemplar também por desmitificar o trabalho do jornalista “herói”, relativamente comum no cinema americano – por isso as comparações com o sóbrio “Todos os Homens do Presidente” (1976) –, ao mesmo tempo em que resgata o valor da profissão nestes tempos de impressionismos de internet: Rezendes morava num pulgueiro, jantava linguiças fritas, mas dormiu no fórum para ter acesso a documentos antes que todos; Sacha vivia com a avó, lavava louça todo dia e ia à redação mesmo quando não precisava.
“Spotlight” trata de um assunto perene e intrincado de forma precisa, sem adjetivos. De quebra, faz ode ao jornalismo old-school. Para ver, rever e lembrar.
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