Denzel Washington nos oferece uma interpretação muitíssimo digna e poderosa no papel de um dos patriarcas mais imponentes do teatro dos EUA em “Um Limite Entre Nós”, um clássico da literatura dramática contemporânea que finalmente recebeu uma adaptação comovente à altura da peça para a telona.
Washington assume também a cadeira do diretor nesse filme que teve o roteiro adaptado pelo próprio dramaturgo, August Wilson, antes de ele morrer em 2005. Como uma obra cinematográfica, “Um Limite Entre Nós”, diferente do que sugere o título original (“Fences”, literalmente “cercas”), não procura arriscar tudo para superar os limites.
Teatral, cheio de monólogos e ambientado quase que inteiramente no quintal bagunçado de uma casa de classe trabalhadora na cidade de Pittsburgh da década de 1950, muitas vezes o filme parece confinado, mesmo quando a câmera de Washington se arrisca a explorar um bar da vizinhança ou um ambiente de trabalho. Mas a atmosfera claustrofóbica é precisamente o que é necessário para esse estudo profundo da personalidade de um homem que está prestes a explodir de tanto ressentimento acumulado, potenciais frustrados e orgulho masculino.
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No papel do protagonista ferozmente carismático do filme, Troy Maxson, Denzel Washington não para um minuto de esbravejar, apresentando os solilóquios furiosos de Wilson menos como árias verbais e mais como rituais de dominação e agressão de um macho alfa. Enquanto ronda o seu território minúsculo, Troy emerge como uma figura tão classicamente belicosa, mítica e contraditória quanto seu nome sugere.
Talvez não existissem funcionários de sanitarismo na época dos grandes tragediógrafos como Eurípedes, mas essa que é a profissão de Troy recebe nas mãos de Wilson um tal tratamento que ela surge carregada de gravitas e um sentido heroico. “Um Limite Entre Nós” se abre com Troy e seu melhor amigo Bono (Stephen Henderson) terminando o seu turno, enquanto Troy reclama, em voz alta, que os empregos de motorista com salários melhores não estão disponíveis para trabalhadores afro-americanos.
Enquanto os dois voltam para o quintal de Troy para dividirem uma garrafa de gim e baterem papo, Troy prossegue falando, e seu discurso vai crescendo e crescendo até chegar a uma lembrança exuberante da vez em que ele “espantou a morte” enquanto sofria de um surto de pneumonia.
Conforme Washington parece ir ficando cada vez mais alcoolizado em tempo real, a sequência anuncia, sem qualquer espaço para dúvidas, que estamos nas mãos de um contador magistral de histórias – alguém que tece narrativas que lhes são ao mesmo tempo uma prisão e uma armadura contra um mundo no qual, diz ele mais tarde, ele já nasceu tomando de dois a zero.
Raiva e remorso
Parte da fascinação do público por Troy vem de como ele consegue, num instante, conjurar emoções dramaticamente concorrentes. Num momento simpatizamos com ele por ter perdido a chance de ser um jogador profissional de beisebol; no outro, o vemos criticar astros do esporte, maldizendo as ligas negras. Num momento ele incorpora um tipo de força e independência pelas quais a classe trabalhadora dos EUA é merecidamente louvada, e no outro ele esmaga, cruelmente, as ambições de seu filho adolescente Cory (Jovan Adepo), que quer jogar futebol no time da sua escola.
No papel de supervisionar essa mescla inflamável de raiva e remorso está sua esposa Rose, interpretada por Viola Davis (vencedora do Oscar e do Globo de Ouro de atriz coadjuvante), numa performance magnífica que tem a imobilidade como sua base, mas uma imobilidade que estoura de paixão, vida e – depois que o enredo segue por rumos devastadores – uma fortitude e sacrifício sobre-humanos (Washington e Davis estão reprisando os papéis que renderam a cada um deles um prêmio Tony pelo retorno da peça à Broadway em 2010).
Há outros personagens ainda que vêm e vão, incluindo o filho adulto de um casamento anterior de Troy e seu irmão Gabriel (Mykelti Williamson), um veterano de guerra que sofreu lesões cerebrais, mas essas aparições parecem surgir mais por conveniência simbólica do que por qualquer motivo orgânico.
Julgamento divino
Como sugere o nome de Gabriel, o espectro (ou promessa) do julgamento divino é uma presença constante em “Um Limite Entre Nós”, que, entre suas muitas virtudes, refuta as condenações mais óbvias das políticas de identidade da nossa era. Nesta que é uma história tipicamente americana, até demais, vemos como as realidades históricas e estruturais se inscrevem mesmo nos nossos traumas e triunfos mais íntimos. Os destinos e legados que se chocam e se mesclam ao longo de “Um Limite” são produtos, ao mesmo tempo, tanto da psicologia edipiana quanto do trauma da Passagem Média, durante a escravidão, e da Grande Migração negra.
Essas forças se reúnem nos redemoinhos do vórtice da psique de Troy em “Um Limite”, que tem como sua perspectiva a do seu próprio protagonista inquieto, até os mínimos detalhes desconcertantes. Por mais perturbados que possamos ficar com a capacidade de grosseria e auto-ilusão de Troy, o texto de Wilson e a performance generosa de Washington permitem que a plateia possa se refestelar no seu humor ácido e suas verdades domésticas, ditas sem meias palavras.
Carregado, ao mesmo tempo, de sabedoria antiga e de uma relevância dolorosa, “Um Limite Entre Nós” transmite a sensação de ter sido criado tanto para a posteridade quanto para o agora, para este exato minuto. Como todas as personalidades atemporais, Troy é um homem da nossa era, seja nos momentos em que parte para cima de nós, esbravejando com tudo, seja quando ele vem mais como um sussurro perturbador.