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James Baldwin, o personagem central de “Eu Não Sou Seu Negro” | Divulgação/
James Baldwin, o personagem central de “Eu Não Sou Seu Negro”| Foto: Divulgação/

Às vezes aparecem filmes que a gente queria. Às vezes, são filmes de que a gente precisa. E, muito de vez em quando, aparece um filme que a gente não sabia que queria ou que precisava, mas que chega por via de necessidade cármica: uma crítica mordaz, uma provocação ardida e um bálsamo refrescante, tudo ao mesmo tempo.

O milagre cinematográfico em questão é “Eu Não Sou Seu Negro”, um filme elegante e emocionalmente devastador de Raoul Peck sobre James Baldwin que estreia no Brasil na próxima quinta-feira (16). Não se trata de um documentário biográfico do começo ao fim, por mais bem vinda que fosse uma história sobre toda a vida de Baldwin. Em vez disso, Peck usou um manuscrito inacabado do escritor não só como um modo de explorar a psique em evolução de um dos mais proeminentes homens das letras dos EUA do século 20, mas também como um trampolim para explorar como o racismo e as questões de identidade, história e vergonha e negação coletiva conspiraram para forjar uma cultura norte-americana dramaticamente bifurcada.

Em 1979, Baldwin escreveu uma carta ao seu agente propondo um livro chamado “Remember this House”, sobre suas relações com os líderes dos movimentos dos direitos civis, Medgar Evers, Martin Luther King Jr. e Malcolm X. A carta em si já era um ensaio brilhante, representando o “estado de espírito dividido” de Baldwin quando ele veio para os Estados Unidos – nessa época, ele estava vivendo no sul da França –, dividido pelas forças da sua vida doméstica e familiar, da busca por um lugar para si dentro dos movimentos políticos das décadas de 1950 e 1960 e do sentimento de ter sido traído que se abateu sobre ele ao ver como até mesmo os mais bem intencionados dos brancos raramente conseguiam encarar de frente a violência sendo cometida em nome da supremacia racial (em certo ponto, Baldwin descreve os brancos como “moralmente monstruosos” por sua incapacidade de compreender os efeitos assassinos da escravidão, da segregação e do privilégio não reconhecido).

A lente pela qual o manuscrito de Baldwin examina esses temas foi o clima dos assassinatos de Evers, King e Malcolm X, mas ele amplia seu olhar para incluir a cultura popular dos EUA também, desde os westerns aos quais ele assistia ansiosamente quando era criança até parábolas liberais como “No Calor da Noite”, com sua narrativa apaziguadora para os brancos e sua sublimação da fúria afro-americana. Lido com sutileza e sensibilidade por Samuel L. Jackson, o livro de Baldwin – que conta com apenas 30 páginas que foram completadas antes de ele morrer, em 1987 – fervilha com uma fúria extremamente precisa e um sentimento acumulado de injustiça que figuras como Sidney Poitier e Harry Belafonte foram obrigados a suprimir nas telonas, para não ofenderem as sensibilidades inocentes dos seus fãs brancos.

Espírito shakespeariano

Pontuando as palavras de Baldwin com suas próprias aparições inflamadas em palanques e talk shows, Peck cria um retrato envolvente de uma inteligência afiadíssima e animada por um espírito destemido e um domínio extemporâneo da linguagem que chega a ser shakespeariano em sua musicalidade e sentido. Apenas alguém com uma tremenda erudição como a de Baldwin seria capaz de misturar história, economia, política, psicologia, lembranças pessoais e crítica cultural com o tipo de simplicidade tranquila e perspicaz que fez dele um grande autor e uma celebridade legítima.

Por mais gratificante que seja ver “Eu Não Sou Seu Negro” como uma chance de testemunharmos um dos últimos grandes intelectuais públicos, Peck não apenas faz jus ao material, como vai além ainda, ilustrando os escritos e discursos de Baldwin com mais do que apenas imagens históricas, mas também cenas de vídeos dos dias de hoje de protestos em Ferguson, no Missouri, e do Black Lives Matter. O resultado, uma obra de uma urgência feroz, é por si já uma composição cinematográfica brilhante, não apenas por conta da história há muito irresolvida que ele procura confrontar, mas em sua tentativa de compreender o que está acontecendo aqui e agora.

É claro que o passado nunca é só passado, sobretudo quando ainda é evitado sistematicamente por aqueles para quem o seu reconhecimento honesto acarreta uma ameaça existencial. A mesma ideia foi explorada também e levada adiante por “A 13ª Emenda”, de Ava DuVernay, e “O.J.: Made in America”, de Ezra Edelman, ambos os quais, como “Eu Não Sou Seu Negro”, foram indicados ao Oscar este ano.

Assistam a todos esses filmes. E comecem por este, nem que seja só para sentir o poder persistente da voz de Baldwin, ecoando como se vinda da boca de um anjo implacável que, se tivermos sorte, teremos sempre ao nosso ombro.

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