"No domingo de Pentecostes do ano de 1828 recolhemos na cidade de Nuremberg uma criatura abandonada que mais tarde chamamos de Kaspar Hauser. Ele mal sabia andar e pronunciava apenas uma frase. Depois, contou-nos que, logo após nascer, viveu preso num calabouço. Ignorava o mundo exterior e a existência dos seres humanos, pois lhe deixavam o seu alimento à noite, enquanto ele dormia, não tendo noção do que era uma casa, uma árvore, ou a fala, até que um homem entrou onde jazia. O mistério de sua origem nunca foi esclarecido."

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O letreiro inicial do filme O Enigma de Kaspar Hauser, dirigido em 1974 pelo alemão Werner Herzog (Fitzcarraldo) – e que no ano seguinte levaria o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes –, apresenta o pressuposto central do enredo: a imersão da referida "criatura", um homem adulto que jamais teve contato com o mundo para além de um porão fechado, em uma pequena comunidade interiorana da Alemanha. Uma edição remasterizada está chegando às locadoras brasileiras nessa semana pela Versátil.

Kaspar viveu décadas amarrado ao chão, alimentado a pão e água, tornando-se um ser frágil, isolado e ignorante, que conhece pouco além dos limites do próprio corpo, cheio de feridas. Ele também não domina a linguagem, não fala, nem escreve. Nesse estado, com uma carta na mão e um livro de orações, é levado e abandonado na praça de uma cidade por uma misteriosa figura negra. Kaspar não conhece as regras de conduta social. Logo, um morador da cidadezinha menciona que é necessário "enquadrá-lo". Então, a "criatura" aprende a linguagem e passa a conhecer o mundo por meio da fala, da escrita e da música.

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Mas, a ignorância de Kaspar o faz parecer um débil aos olhos da sociedade. Ao mesmo tempo, ela permite uma observação e compreensão absolutamente nova e original do mundo. Como um gênio, ele cria o seu universo de valores e vivencia com paixão as coisas que, para os outros, aparentam ser banais e corriqueiras (a natureza, a música). Impressiona quando demonstra a velocidade de seu aprendizado, mas permanece um excluído. É aberração, curiosidade científica, atração de circo (ao lado de um urso e outros "grandes enigmas" – todos seres humanos).

A passagem de Kaspar pelo mundo torna-se "um grande golpe", uma existência condenada ao sofrimento. A última cena talvez seja a maior expressão sobre a incongruência entre Kaspar e o mundo, a mediocridade sobrepujando a paixão: uma vez morto, e dissecado, é finalmente possível "enquadrá-lo". GGGGG