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São Paulo (Folhapress) – Finalista do Booker Prize deste ano, Não Me Abandone Jamais (Companhia das Letras, 344 págs.), do inglês Kazuo Ishiguro, autor de Os Vestígios do Dia, causa estranheza.

Como no último romance de Philip Roth, aqui também se propõe um universo histórico paralelo. Em Complô Contra a América, a hipótese é: o que ocorreria se os EUA tivessem apoiado a Alemanha nazista na Segunda Guerra? No livro de Ishiguro, vemos a clonagem humana, que estaria há muito assentada na sociedade.

Nos dois casos, não está tanto em jogo o tema, mas como as obras conseguem sobreviver – literariamente. O quanto cada autor consegue, ou não, ser bom constitui a medida de sua excelência artística. Em Ishiguro, a clonagem é uma pedra no sapato tão grande que quase nos abstivemos de alardeá-la, sob o risco de roubar a surpresa ao leitor. Desde o início sabemos que há algo sórdido ocorrendo num internato.

O horror não está na clonagem, mas na forma como a humanidade opta por negar a alma e, portanto, o direito à vida. A questão foi abordada em A Vida dos Animais, de Coetzee. O paralelo histórico volta sempre aos judeus enviados às câmeras de gás. Daí a relevância do livro de Roth, apesar de ele teimar que o anti-semitismo acabou. Está vivo nos subterrâneos da mente e como possibilidade estética do horror. O pesadelo é revelado a conta-gotas, de modo que, mesmo que saibamos que o pior nos aguarde, quando chegamos ao fim, ele ainda nos chacoalhe por termos sido capazes de pensar num desenlace que não fosse o mais horrível possível.

A história é contada em primeira pessoa por Kath, uma mulher de 31 anos que decide descrever sua passagem pelo internato, bem como sua relação com dois dos alunos de lá, Tommy e Ruth. A narrativa em primeira pessoa é um procedimento narrativo que Henry James relacionava ao mundo amorfo da autobiografia. A questão é que, aqui, nada é amorfo: é milimetricamente planejado.

O mal-estar resume-se a uma pergunta: como Kath pode deixar de implicar, desde o início, a verdade sobre sua condição existencial? O fato é que apenas narrando do jeito que ela narrou é que podemos sentir o peso de sua sina. Mas aí passamos a desconfiar que seu acerto de contas não esteja voltado para si, mas para o proveito do leitor. Artifício que nos deixa com a impressão de falsidade, do ponto de vista moral.

Kath vira sua história, como um espelho, ao leitor. Ela se dirige a ele como a alguém que partilhe seu destino. Num dado trecho, percebe que um dos personagens a vê com repugnância e medo, como se fosse uma aranha. Pondera que o choque de ser vista como um inseto pode ser comparado a um espelho diante do qual passamos, até um dia percebermos que está refletindo uma outra "coisa estranha e perturbadora". Ou seja, nós mesmos como insetos. É nesses momentos que a arte de Ishiguro se mostra inigualável.

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