Pedra fundamental da estátua foi lançada em 1922| Foto: AFP PHOTO / ANTONIO SCORZA

O tamanho da antipatia de Miles Davis (1926 – 1991) era comparável ao de seu talento para o jazz. O trompetista subia ao palco e começava a tocar de costas para a platéia sem ao menos dizer boa noite. Terminava o que tinha que fazer ali, pegava seus apetrechos ia embora sem dizer tchau.

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Quando J.M. Coetzee assumiu seu lugar no centro do palco da 5.ª Festa Literária Internacional de Parati (Flip), sua postura foi a de um Miles Davis literário. Com a diferença que o Nobel sul-africano ainda disse "Boa noite" e "Obrigado", cada qual no início e no fim de sua leitura no sábado.

Na apresentação, o diretor de programação Cassiano Elek Machado explicou que Coetzee aceitou o convite da Flip com a condição de não ter de responder perguntas. O acordo foi explicado ao público que, em parte, não conseguiu evitar a frustração. "Que sujeito antipático!", "Arrogante!" e "Só porque é Nobel!" foram alguns dos comentários que circulavam entre as pessoas que acompanharam sua leitura, revoltadas justamente porque o autor apenas leu e não chegou a conversar com a audiência. Mas esse "apenas" é relativo.

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Coetzee não costuma aceitar convites para eventos literários e é avesso a badalações sociais. Sua recusa em comentar a própria obra é quase tão célebre quanto ela mesma.

A disposição em vir ao Brasil para a Flip – e ainda ler trechos de um livro que não saiu nem no mercado anglófono – foi a maior atenção que um grupo de leitores poderia receber de Coetzee. O problema é que muitos no público esperavam uma performance. Algo como fez o britânico Will Self na quinta-feira, contando piadas e arrancando gargalhadas de todos.

Com meia hora de leitura, uma mulher sentada nas primeiras fileiras virou para a outra: "Ele não vai falar nada?". Pergunta sem sentido porque Coetzee estava falando e, por meio de sua obra, dizendo muito.

A leitura teve base em trechos de "Diário de um Ano Ruim", um romance com características de ensaio – traduzido para a Flip por José Rubens Siqueira –, semelhante a um de seus títulos anteriores, "Elizabeth Costello", de 2003. O livro novo, nas palavras do autor (sim, ele foi além do "boa noite" e "obrigado"), é dividido em "Opiniões Fortes" e "Opiniões Brandas". O primeiro grupo aborda temas como o corpo, a matança de animais e o ato de pedir desculpas. O segundo transita por pássaros, erotismo e Dostoievski.

"O livro consiste em um grupo de pequenos ensaios. Podemos chamar de reflexões, pensamentos ou meditações. Mas eu chamo de opiniões", explicou o sul-africano. O ano ruim em questão começa em 2005 e termina em 2006. Todas as opiniões foram escritas por um homem em seu diário como resultado de "paixões e eventos". Cada uma tem a sua própria história e, reunidas, elas "pertencem ao tempo".

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Além de vencer o Nobel de Literatura em 2003, Coetzee – a pronúncia em africânder fica próxima de "coutsía" – é o único autor na História a ter vencido duas vezes o Man Booker Prize, o mais importante para livros escritos em inglês. Em nenhuma das duas ocasiões foi receber a láurea pessoalmente. Ele apareceu na cerimônia do Nobel, mas fez o discurso mais curto em todos os 107 anos de existência da Fundação Alfred Nobel.

O comentário em Parati é que Coetzee decepcionou. É possível que ele tenha sido apenas coerente com tudo o que escreveu na vida. Dono de uma obra contundente e pessimista (ou realista, dependendo do ponto de vista), talvez não tenha a urgência de se sentar diante de uma platéia para responder perguntas do tipo "como você se tornou escritor?".