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Sambista cantou para uma Boca Maldita lotada de gente e iluminada pela “lua de Luanda” | Henry Milléo/Gazeta do Povo
Sambista cantou para uma Boca Maldita lotada de gente e iluminada pela “lua de Luanda”| Foto: Henry Milléo/Gazeta do Povo

O carnaval de 1988 não foi brincadeira. Dois fatos políticos fundamentais para o país inspiraram as Escolas de Samba do Rio de Janeiro: o primeiro centenário da abolição da escravidão e a promulgação da Constituição Federal depois de 24 anos de fissura coletiva por democracia.

Naquele ano, o grande Martinho compôs para a sua Vila Isabel o samba enredo "Kizomba, a Festa da Raça" que, aliás, saiu campeão. O samba mistura os temas imaginando um grande carnaval de liberdades: "um evento que congraça gente de todas as traças numa mesma emoção, esta kizomba é a nossa Constituição", canta desde então a voz do povo.

Vinte e cinco anos depois, vendo o sambista cantar para uma Boca Maldita lotada de gente e iluminada pela "lua de Luanda" (bem ali, perto do escondido monumento que celebra o primeiro comício pelas eleições diretas), fiquei orgulhoso de estar fazendo parte da grande bagunça pública que foi a Corrente/Virada que acabou no domingo.

Por mais que se possa criticar as escolhas, os gastos e ideias dos gestores públicos, a saber a Secretaria Estadual de Cultura (Seec) e a Fundação Cultural de Curitiba (FCC), que levaram a cabo a série de eventos – algo que procuramos fazer aqui neste espaço e que muita gente boa também fez com suas próprias armas – a certeza é que todo mundo sai ganhando com a festa.

No fundo, não é favor nenhum. O poder público só cumpre a obrigação consagrada na carta constitucional de "garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais".

Também é certo que uma semana – ou um fim de semana – não bastam. A batalha é diária e envolve todo mundo que precisa de Cultura com C maiúsculo para viver. Mas este modelo de Virada/Corrente com altas doses de cultura gratuita na veia da cidade fazem um bem danado para o sistema nervoso central coletivo.

Pois, com todos os defeitos, o evento sabe ser democrático, o que não é pouca coisa.

Para caras como eu, que cresceram zanzando pelo centro da cidade, é um prazer ver a misturada nas velhas ruas fechadas, sem carros, nas praças e quebradas de gente de todos os times, alguns que não apareciam por aqui fazia tempo. O grande protagonista é o povo nas ruas.

As poucas ocorrências ruins são desprezíveis diante do volume de gente nas ruas, municiando de bons argumentos aqueles que, como eu, acreditam que, quanto mais liberdade, mais paz. Também deu gosto ver os palcos que receberam a prata da casa lotados e com boa estrutura. A torcida é que, nas próximas edições, os "locais" estejam misturados no espaço e nos cachês com os sempre bem-vindos forasteiros.

Notável também a feliz coincidência na escalação que privilegiou a música negra brasileira com muito rap e samba (Karol Conka à frente) numa semana em que uma malresolvida decisão judicial limou o feriado do Dia da Consciência Negra.

Engraçado que a Associação Comercial do Paraná, que conseguiu na Justiça a revogação do feriado para que o comércio não saia no prejuízo, apesar de apoiar a Corrente e as homenagens a Waltel Branco, ainda não criou uma estratégia para aproveitar a inusitada presença de milhares de pessoas nas ruas.

Lanchonetes, restaurantes e outros serviços ficaram fechados na maior parte do tempo, à exceção dos bravos comerciantes asiáticos que sempre entram na Kizomba. Agora é esperar que o ano que vem seja ainda melhor.

A coluna é dedicada ao grande sambista Delcio Carvalho, falecido ontem no Rio de Janeiro.

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