O ato de escrever é, quase sempre, solitário. No entanto, sem o inferno dos outros não há literatura. Isso não quer dizer que o escritor tenha de pensar sempre em agradar aqueles que o lerão. Pode escrever apenas para o leitor ideal, ou para ele mesmo, numa obsessão que o impele à escrita mesmo que não tenha a menor ideia se alguém irá ler aquilo. Move-lhe uma força interior que não o deixa ficar sem colocar palavras em um papel. Há uma grande diferença entre escrever e ser lido.
A arte só faz sentido e vive quando é usufruída.
O ato de escrever pode ser libertário, pode salvar a vida de quem escreve, pode evitar a depressão do escritor (assim como pode causar depressão em quem o ler). Pode ser a única razão na vida do escrevente. Ele não saberia viver sem. Para este, pode ser que o leitor tenha pouca ou nenhuma importância. Basta-lhe escrever. Mas se não for lido, não terá feito literatura. O ato de escrever terá sido uma auto-ajuda, uma autopsicanálise, uma espécie de diário secreto ficcional.
Esses escritos solitários, enquanto ficarem guardados e esquecidos, serão um objeto qualquer, um bibelô de uma vó que já morreu, uma peça de roupa que ninguém usa, um vibrador sem pilha que deu prazer enquanto o escritor o utilizava. Esses objetos já cumpriram seu papel e agora são inúteis, enquanto não lidos.
Todo artista é um pouco solitário, mas a solidão do escritor é imensa.
O momento da criação é, na maioria das vezes, solitário. Algumas artes se prestam mais à reunião, ao compartilhamento de emoções mesmo no ato da criação. Seria o caso de uma montagem teatral, ou da preparação de um álbum musical, um filme. É praticamente impossível pensar em solidão ao se fazer um filme ou uma peça de teatro ou um disco, a não ser que seja um único criador que se encarregue de tudo, do começo ao fim.
Mesmo nessas montagens teatrais, cinematográficas, ou musicais, há um momento de criação que é solitário, em que o criador se recolhe para transformar a inspiração em algo que compartilhe emoções e pensamentos lógicos.
Permitam-me a citar um trecho de Shiller em A Educação Estética do Homem, numa bela reflexão que ele faz sobre o instante criativo. Primeiro, adverte que o criador "não pode passar imediatamente do sentir ao pensar; ele tem de retroceder um passo, pois somente quando uma determinação é suprimida pode entrar a que lhe é oposta". Seria um momento inicial de criação. A estaca zero. Tão difícil de transpor que alguns permanecem nela para sempre. Depois viria uma "disposição intermediária, em que sensibilidade e razão são simultaneamente ativas". E conclui:
"Esta disposição intermediária, em que a mente não é constrangida nem física nem moralmente, embora seja ativa dos dois modos, merece o privilégio de ser chamada uma disposição livre, e, se chamamos físico o estado de determinação sensível, e lógico e moral o de determinação racional, devemos chamar estético o estado de determinação real e ativa.
Ou seja, se é que é preciso explicar, o ato de criar, principalmente o ato solitário como o do escritor, não se faz apenas com o impulso sensual, o sentir, ou a intuição. Há uma outra metade que vem junto e no mesmo nível, harmonizadas, que é a razão. Este estado, para Schiller, é o estado da mente livre e só uma mente livre pode ser criativa. Supera a coação e o constrangimento físico e moral, mesmo que permaneça ativa física e moralmente.
A mente livre e criativa é essencialmente solitária no momento da criação. Porém, depende da interação natural e moral com a sociedade que o cerca e com a cultura que o forma, assim como também depende da interação posterior com o público que irá receber a obra criada pois essa só existirá efetivamente a partir do momento em que for compartilhada e usufruída pelos outros.
O escritor é um solitário gregário porque toda obra é grávida de alteridade. A solidão é energia para que a mente livre crie e produza combustível para outros corações e mentes, loucos para que um idiota lhes conte histórias de som e fúria.
*Escrito após palestra de Valter Hugo Mãe em Curitiba (7/8).
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