| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazetado Povo

Eu gosto de ouvir música de olhos fechados.

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Eu li, quando era moleque, alguém importantão que dizia que os ouvidos nunca vão ganhar dos olhos. Que se a gente ficar de olhos abertos o nosso cérebro é tipo pré-programado pra dar preferência pros dados que eles trazem. E a gente perde o poder de se concentrar na audição.

É meio que uma covardia. Na comparação.

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E a pessoa famosa cujo nome eu apaguei da memória tinha razão.

(Será que foi o Leonard Bernstein?)

Quando eu comecei a fechar os olhos foi justamente quando os concertos de música clássica, por exemplo, passaram a fazer um sentido mais pleno. É mais ou menos como quando apagam a luz da plateia, no teatro.

(Aliás, sabia que foi Wagner, um músico, quem inventou isso de apagar a luz da plateia? Antes neguinho ia ao teatro pra ver e ser visto.)

Mas tem coisas que a gente perde, claro, de olhos fechados. Coisas que eu acabo só vendo tipo em DVD, quando já ouvi aquilo diversas vezes e me permito ficar olhando. (Até porque comprar o DVD de um concerto e assistir de olhos fechados ia me parecer jogar dinheiro fora, né? Animal. Compra o MP3, se for pra isso…)

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E tem duas coisas que eu adoro, pelo menos. Duas categorias de dados visuais.

Nem sei bem por quê. Mas elas me parecem uma invasão de intimidade. Como que uma espiada nos bastidores.

E me parecem coisas cheias de uma delicadeza, de um encanto meio difícil de explicar.

Uma são os pequenos procedimentos profissionais, não estritamente musicais, que os músicos precisam realizar.

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Um baterista que troca de baquetas, largando o par usado com o maior silêncio do mundo enquanto o jazz corre solto. Ou põe a baqueta da mão esquerda entre os dentes pra mexer na esteira da caixa. Um trompista que esvazia a saliva do instrumento enquanto estica o olho pro regente, sabendo que tem 15 compassos de silêncio pra fazer isso. Uma violinista colocando a surdina no cavalete. Um timpanista silenciosissimamente esfregando a pele do instrumento pra poder afinar enquanto a orquestra toca. Um guitarrista que se abaixa e regula um pedal entre duas músicas, ou troca de posição a chave de seleção de captadores enquanto canta, 3 décimos de segundo antes de atacar um solo.

Acho bonito. Acho tocante.

Mas linda mesma é a segunda. Categoria.

Que são pura e simplesmente dicas. Deixas.

Poder pegar os rápidos olhares que os músicos trocam entre si é, pra mim, uma versão astronômica do prazer que o CD deu pra gente, de ouvir ruídos ‘indesejados’: respirações, roçadas de arco, pés se mexendo no palco.

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É como ver, se não os músicos, a música inesperadamente nua.

Pode ser numa orquestra, normalmente entre o regente e os músicos. Pode ser o sorriso de uma oboísta depois da cadência que o pianista acabou de finalizar, e que a câmera só pegou (sorriso) no fundo do quadro.

Mas os olhares mais significativos pra mim são sempre os dos músicos que improvisam juntos. E que de repente se dão ou uma deixa (vai você), ou, ainda mais emocionante, pra mim, um olhar de aprovação, de adoração, de cumplicidade, acima de tudo.

Eles estão fazendo ali uma coisa maior que a vida.

Eles sabem mais que a gente.

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E esses olhares são confissões que a gente pode entreouvir.