O romance “Vício Inerente”, de Thomas Pynchon, todo ele uma soma de paranoia, alucinação, perseguição e mania de perseguição, todo desenrolado meio como que uma alegoria do estado de coisas de uma Califórnia hippie idílica, prestes a ser abafada pelos anos da presidência Reagan e a virada para o conservadorismo nos Estados Unidos dos anos 80, termina com uma cena absolutamente linda.
Eu odeio spoilers. Mas isso aqui não estraga muita coisa.
(E, pra quem viu a relativamente feliz adaptação para o cinema feita por Paul Thomas Anderson, já adianto que até essa cena é diferente…)
Digamos apenas que alguém, que passa o livro todo imerso nesse caldo de desconfiança e neurose, está num carro (sozinho, e isso é central pra imagem, senhor Anderson) e de repente se vê, na estrada, no meio de uma névoa pesada. Cerração, pra usar a nossa palavra.
Campo visual reduzido, ele se põe em alerta.
Até que percebe, logo à frente, as luzes de um carro andando lento. Aí ele se põe a uma distância segura, de onde ainda possa acompanhar as luzes e se guiar por elas. Logo depois, alguém adota a mesma postura em relação a ele.
E ele agora está encaixotado entre dois desconhecidos, mas significativamente mais “seguro”, com um ponto de referência à frente e uma proteção atrás contra qualquer maluco em alta velocidade.
Ele está também encaixotado (sozinho, repito) no seu carro. Totalmente isolado daqueles que, afinal, são desconhecidos, mas em cujas mãos está agora uma parcela considerável da sua segurança e do seu bem estar imediato.
E ele mesmo pensa que não pode determinar o tamanho daquela fila de criaturas isoladas e agora interdependentes. Que se ajudam umas às outras movidas por uma espécie de altruísmo egoísta: todos querem SE proteger, afinal.
Podem ser 3 carros. Podem ser 300.
Mas é ali, naquele momento, que ele finalmente se sente seguro. Entre aqueles desconhecidos.
*
Voltando da praia, no dia do Natal (as “férias”, aqui em casa, duraram 30 horas), no alto da Serra caiu uma chuva torrencial. Daquelas que em momentos te deixam com uma visibilidade de quatro, cinco metros à frente.
Eu, dirigindo, imediatamente me crispei.
Eu estava trazendo a minha mulher e a minha filha. Elas dependiam de mim ali.
Segurei mais forte o volante, mudei de posição, duro, no banco. Só fui perceber o quanto fiquei tenso quando saí do carro aqui em casa e fui mexer o pescoço.
Mas logo depois do início da chuva, que durou até a chegada aqui em cima, enquanto a gente ia vendo filas de carros encostados por receio de prosseguir, eu vi duas lanternas vermelhas andando devagar na minha frente.
Encostei, como no livro do Pynchon, a uma distância segura. E dali até o Jardim Botânico vim atrás daquele carro preto. Dez vezes mais tranquilo por isso, e torcendo pra lhe dar também a segurança de estar agindo como “parachoque” contra os eventuais loucos velozes.
Viemos bem. Viemos tranquilos.
Além da chuva, ouso dizer que a pessoa que dirigia o carro preto era o meu tipo de motorista. Nenhuma pressa e tentativa de total tranquilidade.
Não sei quem estava dirigindo.
Não sei o modelo do carro. (Eu sou bem anta pra isso.)
Não quero dar a placa pra não furar a privacidade de ninguém.
Mas, tomara que a pessoa que dirigia aquele carro preto (era um Hyundai…?), possa saber, por aqui, que a gente terminou aquele natal de mãos dadas. Desconhecido que se ajudam e se guiam por interesse próprio, altruísmo de base egoísta, generosidade gratuita e mútua… Tanto faz.
Me pareceu bonito.
Eu, a Sandra, a Beatriz e o carro preto.
E Thomas Pynchon, claro.
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