Me encanta cada vez mais perceber o quanto rola de ficção na dita “história”. De invenção no passado.
Mesmo nas coisas mais cotidianas, os neurocientistas vêm demonstrando o que a gente já tinha sacado tipo toda vez que o Wilson diz que lembra bem quando o papai comprou o fusca verde e apareceu na garagem lá da casa da Amintas e o Wesley diz, peralá, o papai comprou o fusca três anos depois de a gente sair da Amintas. E mostra a nota fiscal.
Mas a lembrança, a visão continua na cabeça do Wilson. A memória dele reelaborou o passado e criou uma cena que pra ele é real. E o que pode ser mais real que isso?
Estranho, mas parece que a realidade relembrada tem uma “realidade” muito parecida com a da ficção.
Ui.
E tudo isso só porque eu li o primeiro volume de “All these years”, a monumental biografia dos Beatles que Mark Lewisohn está escrevendo (ele promete o segundo volume pra 2020 e o terceiro pra 2028! Dói só de pensar…). São quase mil páginas que levam à banda só até as vésperas do primeiro disco!
Claro que é pra fã, só: mas quem não é?
Claro, também, que tem muita coisa fascinante mesmo fora da beatlemania ali naquela história tão “recente” de um mundo tão “parecido” com o nosso, onde no entanto Brian Epstein podia ter todas as marcas até mais estereotípicas de ser gay sem no entanto receber esse rótulo, porque as pessoas nem concebiam essa possibilidade, no mundo “público”.
Horrível.
(E vale lembrar que na Inglaterra dos anos SESSENTA ele podia ser PRESO por ser gay.)
Mas tem uma coisa no livro (eu devo voltar a ele aqui) que me levou àquilo tudo lá de cima.
A formação da banda aconteceu há cinquenta e tantos anos. O autor entrevistou centenas de pessoas. E é raro o momento em que duas lembrem as coisas (às vezes coisas importantes) do mesmo jeito.
Raro pacas.
E todo mundo está dizendo a verdade.
Todo mundo está dizendo a SUA verdade.
Todo mundo, enquanto fala, tem diante dos olhos aquele fusca verde estacionado na garagem da Amintas.
E lembra emocionadamente de um momento inexistente.