Parece que sumiram 78 cartas do acervo da correspondência de Mário de Andrade, guardado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. A história tem ares de romance policial, mas romance policial de terceiríssimo mundo. A começar do fato de que o sumiço foi detectado agora, mas teria acontecido em algum momento entre 2003 e 2010!
Como?
Isso que é controle de material bibliográfico, hein!
Entre 1995 e 2003 o material foi todo catalogado. Ou seja, sabemos quem eram os destinatários e remetentes de todas as cartas (inclusive das perdidas) e sabemos também quais eram os assuntos das ditas das missivas. Esse trabalho de catalogação foi comandado pela professora Telê Ancona Lopez, espécie de guardiã da fortuna crítica de Mário, que com seus pesquisadores teve acesso direto a todas as cartas durante esse tempo todo.
Ninguém está acusando a professora de sumir com cartas que, além de tudo, ela mesma teria catalogado previamente. Para que dar sumiço em material conhecido, então?
O problema é que, entre as cartas, parece haver uma com uma marca de “Confidencial”. E, depois do bafafá que aconteceu no fim do ano passado com a liberação de uma carta de Mário a Manuel Bandeira, que estava fechada até então (parte que era do acervo da Fundação Casa de Ruy Barbosa), certas suspeitas voltaram à tona.
O mesmo uiuiui, afinal, se deu ainda no ano passado com a publicação da biografia de Mário escrita por Eduardo Jardim.
Mas que suspeitas?
Quando eu ainda era aluno de Letras, as tais “suspeitas” em torno da biografia e da correspondência de Mário de Andrade seriam delicadas insinuações de que ele poderia ter sido homossexual. Hoje, em tempos mais esclarecidos (será?), o que resta na verdade é a não tão delicada suspeita de que certa aristocracia paulistana a quem Mário era ligado cultural e até familiarmente (o grande crítico Antonio Candido casou com a filha de um primo do escritor, por exemplo) ainda parece se dar ao trabalho de ocultar os dados relativos a essa homossexualidade.
Algumas das cartas desaparecidas, por exemplo, provém do período em que Mário morou no Rio de Janeiro, que pode bem ter sido o seu momento de “desbunde” (e é o que afirma certo folclore carioca a que Paulo Francis, por exemplo, vivia se referindo), longe que estava dessa mesma elite conservadora e, na época, repressiva, que o monitorava de perto.
A carta a Bandeira, quando finalmente revelada, pode não ter sido a escandalosa “confissão” de homossexualidade que se esperava, mas pra quem sabe ler nas entrelinhas, parece ser um grande desabafo do escritor a respeito das especulações e dos policiamentos que não o deixavam em paz: “Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos, para você, ou para mim, comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade?”.
E a ênfase aqui é em “deixar em paz”.
Eu me lembro de, criança, tosco, “defender” Freddie Mercury das “acusações” de homossexualidade que colegas que não gostavam de Queen mandavam pra cima dele.
Eu sou de 1973. Como eu disse aqui dia desses, eu ainda vi um mundo em que Rock Hudson era símbolo sexual hétero. Em que George Michael e Elton John TINHAM que posar de “machos”.
Eu não consigo conceber a tristeza que deve ter sido a vida de gerações e gerações e gerações de homossexuais que viveram permanentemente escondidos, dos outros e muitas vezes de si próprios, porque o mundo não estava pronto pra eles.
Agora, se Mário de Andrade, progressivo e progressista que era, inteligente e clarividente como poucos, morreu e virou estrelinha, como o seu Macunaí-ma, ele deve estar olhando lá de cima, pasmado e provavelmente emputecido, e pensando que não pode ser verdade.
Nem no ano da graça de dois mil e dezesseis deixam o pobre ser gay em paz…?
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