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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Quem não entende muito de música tende a achar que classificar um cantor como “afinado” ou “desafinado” resolve a coisa da avaliação. A bem da verdade, isso é meio que só o começo, se tanto. E eu sou prova cabal.

Eu sou bem afinadinho. Eu tenho um ouvido bem decente. E, como cantor, sou um excelente professor de história da língua portuguesa.

Mas eu gosto de cantar, e gosto de cantar afinado, em geral por cima (por baixo, provavelmente é a descrição mais precisa) de algum disco tocando ali no player do carro, bem alto, pra eu meio que me misturar com a música gravada.

Na verdade, quando eu era novo, eu levei muito tempo pra descobrir que isso de eu cantar “igualzinho” ao cantor do rádio podia ser visto como um “pró”. Eu morria de inveja de uns conhecidos, e de um primo meu, especificamente, que quando cantavam o seu Biquíni Cavadão (eram os anos oitenta, crianças) ainda soavam “como eles mesmos”. Eu achava aquilo de uma autenticidade impressionante. E me achava “sem personalidade”.

Sério. Foi só já adulto mesmo que eu me liguei que aquilo de respirar junto com o cantor, usar a mesma “voz” dele, dividir os tempos igualzinho, era (pelo menos pra mim) uma coisa interessante.

Porque o problema era que, mesmo invejando o meu primo autêntico, eu simplesmente não conseguia fazer que nem ele. Era tipo mais forte que eu.

Bem mais velho que isso, já com mais de trinta, acho, foi que a minha filha, no carro, uma hora me disse, “nossa papai, você canta igualzinho ao cara do disco”. E eu me vi vingado.

Arrá!

Estrebucha e morre, autenticidade!

Se dei bem!

E isso ainda veio por cima de uma outra coisa: o fato de que a minha mulher me fez, muito longamente, fazer as pazes com esse meu lado “ex-músico”. E me fazer ver que ele era meio um lado “músico perene”, e que isso não precisava ser fonte de angústia.

Ah… a paz.

Agora, mais recentemente, a Sandra comentou um dia que achava engraçado o quanto eu fazia careta pra cantar. Mesmo cantarolando baixinho, quando ela estava comigo no carro.

Eu, meio sem pensar, disse que era meio por isso de eu querer acertar as notas todas. E que isso demandava às vezes um certo esforço. E pedia até certas alterações faciais pra cantar etc…

Bullshit.

Eu achei que era verdade, quando respondi pra ela. Mas era bobagem.

Por que outro dia, indo pegar o liquidificador na assistência técnica (looonga estória: outro dia te conto), resolvi testar.

Eu já fiz coisas mais estranhas que essa quando dirijo sozinho, ok? Foi assim, por exemplo, que eu aprendi canto polifônico mongol uns dez anos atrás.

E aí fiquei cantando junto com um disco do Cake, e me forcei a manter a expressão mais serena e neutra do mundo.

Sabe o que que aconteceu?

Nada de subitamente errar as notas por quartos de tom. Nada de me perder com a métrica ou não conseguir sustentar as frases.

O que rolou na verdade foi meio assustador. Quase muito assustador.

O que rolou foi que eu meio que fui afundando. Quase apagando. Entrando naquilo e deixando de dirigir. Caindo. Sumindo na música.

Pode parecer doido (demais). Pode parecer (demais) improvável.

Mas, ó, te juro. A conclusão mais provável que o meu pequeno experimento gerou é essa: que as caretas, aquele fazer-força, são formas de eu me proteger de uma coisa que, desde que eu era muito novo, sempre ficou me acenando do outro lado. Sempre sereiando. Perigosa.

Uma sensação que coisas como a Passacaglia e Fuga em Dó Menor do velho Bach (vai lá ver) me dão mais diretamente.

Uma sensação de que a música pode ser perigosa. Pode ser um aspirador forte demais.

E que eu, nessa minha disposição (quase vontade) de perder qualquer autenticidade diante dela, de ceder à autenticidade dela…

Eu sou só pó.

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